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{ ARTIGO }

Nova Comissão da Verdade?

José Paulo Cavalcanti Filho explica por que é contra a formação de uma nova comissão para investigar crimes políticos ocorridos durante o regime militar

José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras

Edição: Scriptum

Está circulando a ideia de formar nova Comissão Nacional da Verdade. Com algum outro nome, talvez. Antes de prosperar, seria bom ver que precederam a brasileira, no mundo, outras 40 comissões semelhantes. Mais notória sendo a da África do Sul, criada em 1994 por Nelson Mandela e sob direção de Desmond Tutu ‒ um arcebispo da Igreja Anglicana que foi prêmio Nobel da Paz dez anos antes. Com diferenças, entre essas e a nossa.

Principal e determinante é que todas as outras foram formadas entre seis meses e um ano após a transição, de um governo autocrático para a Democracia. Enquanto, a brasileira, nasceu 30 anos depois. E nenhuma dessas 40 comissões foi criada com o fim específico de fazer justiça. De por, na cadeia, os responsáveis por torturas e mortes. A ideia era, basicamente, só preparar as bases para uma transição menos traumática, em cada país, entre os horrores de antes e os novos tempos.

Tanto que a já referida, na África do Sul, tinha só três subcomissões: violação a direitos, reparação e anistia. O que se buscava, sobretudo, era o conhecimento da verdade. Aquilo que aconteceu, de fato, naquele passado triste. Para quem confessasse o que fez, sendo garantida anistia automática. Valendo notar que não houve uma única prisão, no curso ou por conta (depois) de todas essas outras comissões.

No enorme conjunto de temas que uma decisão assim pode levantar, um é seu próprio objeto. Fui vencido, na primeira reunião de nossa Comissão Nacional da Verdade. Porque pretendia que examinássemos os dois lados. Se é para escrever a história, era o que cabia. Ocorre que não haveria tempo útil, nos foi dado menos que dois anos. Para comparar, à Comissão do Livro Negro em Portugal foram concedidos 10 anos. E como a versão dos vencedores era já conhecida entre nós, melhor nesse breve tempo contar só a história dos vencidos, ainda perdida nas sombras. Concordei com isso. Mas se por acaso formos reabrir os trabalhos em uma nova comissão, e com mais tempo disponível, já não há razão para deixar de contar os dois lados.

Em nosso Relatório Final, identificamos 434 casos documentados de como se deram prisões ilegais, torturas e assassinatos. Como, também, os responsáveis por essa barbárie. Além dos mais que 2 mil casos de desaparecimentos forçados, sem mais provas para saber quais pessoas deveriam responder por eles. Mas, se formos contar os dois lados, bom ver que 108 (relação de nomes ainda por confirmar, o número real pode ser menor) mortos pelos opositores ao novo regime.

Em Pernambuco, por exemplo, tivemos várias dessas vítimas. Como um gerente da Souza Cruz (do grupo British American Tobacco), no Largo da Paz, por ser representante do imperialismo. Ou dois mortos atingidos por estilhaços de bomba, no Aeroporto dos Guararapes, em 25 de julho de 1966.

Havendo ainda, nessa tragédia, aqueles que dificilmente se poderiam por em qualquer dos dois lados. Como alguns membros de movimentos revolucionários justiçados por seus próprios companheiros. Dado que por eles considerados fracos, e caso fossem presos, delatariam (e poriam em risco) os demais. Só para lembrar, depois dos julgamentos, todos tinham que participar dessas mortes. Por ser responsáveis pela decisão que tomaram. Entre seus membros articulistas de jornais, participantes de nossos programas de rádio e ocupantes de cargos públicos. A ideia básica será mesmo contar essa história com a exatidão humanamente possível, identificando todos os responsáveis?

Seja como for, se a intenção da nova Comissão for punir os que tiveram culpa, bom considerar que (quase) não há mais ninguém vivo entre os criminosos daquele tempo. Com certeza, nenhum nome importante. Último deles foi o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto por um câncer em 15 de outubro de 2015.

Com relação à anistia ampla e recíproca, que foi concedida aos dois lados naquele tempo (permitindo voltar ao Brasil Arraes, Brizola e outros), é comum dizer que a Lei da Anistia (nº 6.683) foi votada, em 28 de agosto de 1979, por pressão dos militares. Sobretudo para proteção deles próprios. Com certeza foi assim. Ocorre que houve outra Lei da Anistia, posterior no tempo, da qual pouco se fala. Como se não tivesse existido.

Foi a única exigência feita pelos militares, nas negociações da transição. Para beneficiar os responsáveis pelo RioCentro, que se deu na noite de 30 de abril de 1981. Posterior, portanto, à primeira lei (que é de 1979). Tancredo morto, coube a Sarney honrar esse compromisso. O que foi feito com a Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985 (art. 4º, com sete parágrafos). Votada por um Congresso livre de quaisquer pressões. O mesmo que elegeu Tancredo, opositor civil ao Regime Militar. Uma regra não apenas posterior, no tempo, como também de nível superior ao das leis ordinárias, posto que passou a constar da própria Constituição.

Membros de nossa Comissão (a maioria) pretenderam recusar dita anistia. Para constar, na votação das “Recomendações” da Comissão Nacional da Verdade, votei a favor dela. Textualmente, assim ficou registrado: “Baseado nas mesmas razões que, em 29 de abril de 2010, levaram o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, e com fundamento em cláusulas pétreas da Constituição brasileira, a recusar, por larga maioria (sete votos a dois), essa tese”. Em razão do que nenhum dos envolvidos, de parte a parte, poderá mais ser punido. A menos que o Supremo modifique seu entendimento.

No mais, essa nova Comissão terá todas as dificuldades que tivemos. Sem mais testemunhas confiáveis, em razão da idade dos depoentes (apenas uns poucos vivos). E com todos os documentos destruídos, naqueles tempos ainda, pelos militares. O grosso, nos fundos do Aeroporto Santos Dumont (Rio de Janeiro). Haverá pouco a acrescentar.

De vez em quando perguntam se fui atingido. Respondo que não, posto que restei apenas proibido de estudar no Brasil (era presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito). E pedir Democracia, naquele tempo, era muito arriscado. Respondi processo, por isso. Mais tarde, fui também proibido de ensinar. E ainda lembro palavras de meu pai. Quando cheguei em casa, depois da cassação, disse ‒ “Não fique triste que um dia você ainda vai por isso no seu currículo”. Sábias palavras, saudades do Velho. E nem foi tão ruim; que acabei indo a Harvard, em Bolsa de Estudos (com tudo pago), e a vida seguiu.

Bem visto, quase nada em relação ao que se deu com tantas pessoas queridas que perdi. Como Eduardo Collier Filho, maior amigo que tive na infância, preso ao sair de um hotel barato em Copacabana, num sábado de Carnaval (queria ver as escolas de samba), e morto em Rezende. Fui dos últimos a vê-lo, que fiquei em sua casa num congresso da UNE em Salvador. Informados de que seu corpo teria sido incinerado em forno de uma usina, no Rio de Janeiro, tentamos obter alguma prova do fato. Mesmo contra a opinião dos peritos, que diziam ser (quase) impossível. E fizemos, no local, 108 furos, para ver se conseguíamos algum resto de DNA dos seus ossos, em meio às cinzas. Sem sucesso, infelizmente.

Seja como for, e por tudo, sou contra uma nova Comissão. O país é outro. Nossas prioridades, hoje, são outras. Melhor, como dizia Mateus (8:22), que “os mortos enterrem seus mortos”. E, sobretudo, precisamos de paz. Que o país seja pacificado. Algo cada vez mais difícil; por serem aqueles que deveriam responder por isso mais que todos, no Supremo (segundo a OAB ‒ Federal), os que mais promovem a radicalização e o confronto. O que é ruim, para o Brasil. Por isso pois, amigo leitor, reitero aqui uma ideia simples. A de que num país fraturado, como o nosso, nada é mais importante, necessário e urgente que construir a paz entre os brasileiros.

 

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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