Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
O crime organizado se tornou, nas últimas décadas, uma das maiores ameaças à segurança pública e à estabilidade institucional no Brasil. Facções criminosas dominam territórios, controlam o comércio de drogas e armas, infiltram-se no poder público e comandam ações violentas de dentro dos presídios. Episódios de ataques coordenados em grandes cidades, rebeliões orquestradas e o crescimento exponencial de economias ilícitas mostram que o Estado brasileiro, na forma como atua hoje, não tem conseguido sufocar essas organizações a contento.
A Polícia Federal, força central no combate ao crime organizado, desempenha papel essencial e de alto profissionalismo. No entanto, está sobrecarregada com uma gama excessiva de funções: da emissão de passaportes à repressão de crimes ambientais, da investigação de crimes cibernéticos à fiscalização de fronteiras. Essa dispersão de atribuições limita a capacidade da PF de dedicar recursos e inteligência exclusivamente ao enfrentamento das facções e outras organizações criminosas. Outros órgãos também têm responsabilidades relevantes, mas atuam de forma fragmentada: a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) coleta informações estratégicas, mas não tem poder operacional; a Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) administra os presídios federais, mas carece de integração com investigações em outros órgãos; a SENAD gerencia bens apreendidos do tráfico, mas isolada das operações policiais. Receita Federal, COAF e Banco Central detêm dados fundamentais para rastrear movimentações financeiras ilícitas, mas nem sempre dialogam em tempo real com as forças de segurança. O resultado é um quebra-cabeças institucional, em que cada peça trabalha de maneira isolada. O crime organizado, em contrapartida, opera em rede: conecta traficantes, doleiros, empresários e criminosos de colarinho branco. Sem coordenação centralizada e sem poderes específicos, o Estado permanece sempre um passo atrás.
Ao redor do mundo, diversos países enfrentaram desafios semelhantes e optaram por criar agências nacionais especializadas em combater o crime organizado. Essas estruturas têm foco exclusivo, autonomia administrativa e forte integração entre diferentes forças. No Reino Unido, a National Crime Agency (NCA) funciona como uma espécie de “FBI britânico”, com cerca de 8 mil servidores dedicados a combater organizações criminosas, crimes cibernéticos e lavagem de dinheiro. Seu diferencial está na capacidade de recrutar especialistas civis em tecnologia e finanças, além de policiais, criando equipes multidisciplinares. Na Itália, berço da máfia, foi criada a Direzione Investigativa Antimafia (DIA), com pouco mais de 1.300 agentes. Seu poder, porém, vai muito além do tamanho: a DIA tem a atribuição legal de propor medidas de confisco de bens antes mesmo da condenação final, além de integrar forças policiais, fiscais e militares sob um comando único. O confisco patrimonial e a destinação social de bens apreendidos são marcas do modelo italiano, que se mostrou eficaz em enfraquecer as máfias. A Alemanha reforçou o papel do Bundeskriminalamt (BKA), com forte investimento em inteligência e cooperação internacional. Na Austrália, a Australian Federal Police (AFP) trabalha em regime de task forces permanentes, integrando policiais, militares e auditores. Apesar das diferenças, há traços comuns em todos esses modelos: autonomia administrativa e orçamentária, foco exclusivo no crime organizado, integração interforças e interagências, ênfase em inteligência e sufocamento patrimonial, cooperação internacional estruturada e controle democrático com transparência.
Inspirado nessas experiências, nos somamos aos que defendem a criação de uma Agência Nacional de Combate ao Crime Organizado (ANCCO), uma autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (melhor ainda se for um ministério exclusivo para segurança), mas dotada de autonomia administrativa, orçamentária e técnica. O MJ chegou a esboçar recentemente a ideia de criar uma agência antimáfia, mas o projeto não seguiu em frente, ao que consta por receio da PF de perder poder.
A ANCCO seria composta por servidores próprios e cedidos. Estamos falando aqui em alguns milhares, incluindo grande quantidade de técnicos civis especializados em bigdata, blockchain, contabilidade, criptomoedas, finanças, TI e disciplinas forenses. Sua lógica é ser um cérebro estratégico do Estado contra as facções, mais do que um braço ostensivo. Para grandes operações de campo, poderia acionar a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Força Nacional ou as Policias estaduais, sempre em regime de cooperação.
A ANCCO teria sede em Brasília e unidades regionais em todos os Estados, com escritórios avançados em fronteiras, portos e aeroportos estratégicos. Sua estrutura incluiria departamentos de Investigação e Operações Especiais, conduzindo investigações complexas e articulando operações com PF, PRF e FNSP; Inteligência e Tecnologia, em parceria com a ABIN, operando laboratórios de cibercrime e criptoativos; Recuperação de Ativos e Gestão Patrimonial, incorporando a SENAD, auditores da Receita e analistas do COAF e Banco Central; Inteligência Prisional, em cooperação com a SENAPPEN, monitorando líderes de facções e comunicações dentro do sistema carcerário; Cooperação Internacional, com escritórios de ligação junto a DEA, Europol, ONU e países vizinhos; Prevenção e Prospectiva Criminal, emitindo relatórios periódicos sobre tendências do crime organizado; e Administração e Finanças, gerindo um Fundo Nacional de Combate ao Crime Organizado (FNCCO), abastecido preponderantemente por bens confiscados do crime organizado.
Mediante autorização judicial e fiscalização do MPF e da Justiça, a ANCCO teria poderes para realizar interceptações de comunicações, infiltrar agentes físicos ou virtuais, usar identidades fictícias em operações encobertas, retardar prisões em operações controladas, acessar dados bancários, fiscais e de telecomunicações de investigados, rastrear criptomoedas e ativos digitais e propor medidas de confisco alargado, incluindo bens desproporcionais à renda declarada.
Para evitar abusos, a ANCCO teria mecanismos de controle e transparência: relatórios públicos anuais de atividades, relatórios sigilosos a Comissões de Segurança no Congresso Nacional com dados sensíveis, auditoria permanente do TCU e da CGU, supervisão jurídica pelo Ministério Público Federal e criação de uma Ouvidoria independente para denúncias de abusos.
A grande inovação da ANCCO está em reunir, sob um só teto, o que hoje está fragmentado: a inteligência estratégica da PF e da ABIN, o monitoramento prisional da SENAPPEN, a gestão patrimonial da SENAD, o poder financeiro da Receita, COAF e Banco Central, a capacidade operacional da PF, PRF, FNSP e o controle e auditoria da CGU e do TCU. Trata-se de construir um modelo de Estado em rede contra o crime em rede.
O Brasil não pode mais se dar ao luxo de reagir de forma fragmentada ao crime organizado. A atual dispersão institucional deixa lacunas exploradas pelas facções, que contam com logística sofisticada, poder econômico e conexões internacionais. A criação da ANCCO não significa esvaziar a Polícia Federal ou outros órgãos, mas sim potencializar sua atuação, criando um centro integrado, autônomo e com foco exclusivo nas facções criminosas. É necessária uma agência mais enxuta, eficiente e blindada contra interferências políticas, capaz de sufocar economicamente o crime organizado, antecipar tendências e coordenar de maneira inteligente os recursos do Estado. Este é um debate urgente que precisa ganhar o plenário do Congresso e, sobretudo, a atenção da sociedade. O crime organizado já demonstrou sua força. Passou da hora de o Estado mostrar a sua.
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