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{ ARTIGO }

O caso das guardas municipais e o STF

Tulio Kahn e Bruno Moreira Kowalski analisam a interpretação do Supremo sobre a atuação das guardas municipais

Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático, e Bruno Moreira Kowalski, advogado especialista em Direito Público

Edição Scriptum

 

As responsabilidades sobre as áreas de educação e saúde são de competência compartilhada das esferas federal, estadual e municipal. Estas competências são reguladas pela Constituição e legislações infraconstitucionais diversas, como a Lei do SUS.

Assim, apesar de algumas zonas cinzentas, as leis definem de maneira geral que o município cuida da Educação Infantil e do Ensino Fundamental 1. O Ensino Médio é prioridade do governo estadual, que também gere o Ensino Fundamental 2. A União, por sua vez, fica com função de coordenação financeira e técnica desse arranjo, ao mesmo tempo em que conduz as universidades federais. As competências, às vezes, são concorrentes e nada impede que os Estados criem suas próprias universidades, mas as responsabilidades básicas são bem divididas entre os entes federativos.

Na área da saúde, por exemplo, cabe ao município a administração da saúde básica, a atenção primária. Já o governo do Estado fica com a tarefa de gerenciar os leitos e internações nos hospitais, além de comandar os atendimentos especializados. Cabe aos municípios o dever de aplicar no mínimo 15% de sua receita na área de saúde e ele é responsável pelo atendimento inicial da população. O município administra as UPAS, o SAMU e demais serviços de saúde da cidade e conduz as campanhas de vacinação. Cuida da fiscalização sanitária e da vigilância epidemiológica. Os papéis de cada um são claros e detalhados para que não haja superposição de trabalho nem desperdício de recursos.

Na área da segurança pública, porém – apesar de tentativas como a do SUSP (Sistema único de Segurança Pública), inspirado no SUS – não existem obrigações e responsabilidades claras para os municípios, Estados e governo federal. A lei diz apenas que os municípios que quiserem podem criar Guardas Municipais, mas não obriga os municípios a fazerem. Trata-se de uma capacidade, não de uma obrigação. Tampouco os municípios são compelidos a investirem uma porcentagem fixa do orçamento em segurança pública, como ocorre com saúde e educação. Não recebem, também, obrigatoriamente, parcelas de recursos federais ou estaduais para investir em segurança. O SUSP sempre foi mais uma inspiração do que uma realidade.

Apesar desta falta de clareza na distribuição de funções na área de segurança e das competências das Guardas, segundo a MUNIC, a quantidade de cidades brasileiras com guarda municipal aumentou de 15,5% em 2009 para 19,4% em 2014. Cresceu para 21,3% em 2020 e finalmente 34% na pesquisa de 2023. (MUNIC, IBGE, vários anos)

Mas o que diz, afinal, a Constituição e a legislação infraconstitucional sobre o papel dos municípios na segurança pública e as competências das guardas municipais?

Em seu art. 144, a Constituição estabelece que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio através dos seguintes órgãos: Polícia Federal; Polícia Rodoviária Federal; Polícia Ferroviária Federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares. Não há menção às guardas municipais! Assim como não há menção à Polícia Técnico-científica, à Força Nacional de Segurança Pública ou à Polícia Penal.

E com relação às funções das Guardas, o que diz a Carta? de acordo com o §8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. Observe-se a limitação clara à proteção dos bens, serviços e instalações municipais, como praças, escolas, postos de saúde, etc. geridos pelo município.

A Constituição estabelece ainda, em seu Art. 30, que “Compete aos municípios: I – Legislar sobre assuntos de interesse local; II – Suplementar a legislação federal e estadual no que couber.”, reconhecendo, portanto, que os municípios podem legislar sobre segurança, claramente um assunto de interesse local.

Apesar desta limitação de competências, na prática as Guardas exercem muitas outras atividades. Já em 2009, na primeira edição da MUNIC IBGE, a pesquisa, respondida pelas prefeituras, identificou que entre as funções exercidas pelas guardas estavam: “Segurança e/ou proteção do prefeito e/ou outras autoridades”,    “Ronda escolar”,  “Proteção de bens, serviços e instalações do município”, “Posto de guarda”, “Patrulhamento ostensivo a pé, motorizado ou montado”, “Atividades da defesa civil”, “Atendimento de ocorrências policiais”, “Proteção ambiental”, “Auxílio no ordenamento do trânsito”, “Controle e fiscalização de comércio de ambulantes”, “Auxílio à Polícia Militar”, “Ações educativas junto à população”, “Auxílio à Polícia Civil”, “Patrulhamento de vias públicas”, “Auxílio ao público”, “Auxílio no atendimento ao Conselho Tutelar”, “Segurança em eventos/comemorações”, “Atendimentos sociais (partos, assistência social, dentre outros)”,  “Serviços administrativos”,        “Assistência ao Judiciário” e “Programas sociais de prevenção ao crime e violência”, entre outras atividades.

Essa emulação das atividades da PM não é acidental, uma vez que é frequente que policiais militares e civis aposentados sejam convidados para gerir as secretarias municipais de segurança ou guardas municipais, acabando por reproduzir o sistema com o qual estão familiarizados.

Nas últimas décadas, em razão do crescimento da violência, novas legislações – como o Estatuto das Guardas de 2014 e a Lei do SUSP de 2018 – e de incentivos financeiros do Governo Federal, os municípios vêm aumentando sua presença na segurança, criando estruturas e instituições como Secretarias Municipais de Segurança, Guardas Municipais, Fundo Municipal de Segurança, Conselho Consultivo Municipal, Conselhos de Segurança nos bairros, Planos Municipais de Segurança Pública etc.

Em contraste com prefeituras preocupadas apenas em militarizar e armar as guardas há também aquelas onde existe um esforço de integrar as demais pastas municipais numa perspectiva preventiva, pensando as ações de segurança em conjunto com o serviço social, esportes, educação, iluminação pública, limpeza e assim por diante. Às vezes são os próprios prefeitos que reúnem periodicamente todos os envolvidos para monitorar os resultados, alocar recursos e cobrar ações. As prefeituras têm também investido bastante em tecnologias como câmeras de monitoramento, centrais de despacho de viaturas, leitores óticos de placas, aplicativos de celular, drones, georreferenciamento criminal, sistemas de registros de ocorrências digitalizados e outros equipamentos e recursos tecnológicos. Os municípios podem atuar também na segurança através de mudanças na legislação, regulamentando poluição sonora, venda de álcool, segurança de grandes eventos ou impondo regras aos estabelecimentos semipúblicos, como clubes e shoppings centers.

Existem assim diversas alternativas para a atuação dos municípios na segurança, que não se limitam ao policiamento ostensivo e às operações policiais. O fato é que pouco a pouco a legislação foi ampliando esse papel das guardas para além do previsto na Constituição, o que gerou uma série de controvérsias sobre prisões, revistas, entrada e busca em domicílios e outras ações que foram contestadas na Justiça. Exemplos desta ampliação encontram-se no Estatuto das Guardas e na Lei do Susp, cujos aspectos principais destacamos abaixo.

Atribuições da Guarda pela lei nº 13.022/2014

O Estatuto diz que o município pode criar uma Guarda Municipal, que tem como principal função proteger o patrimônio público da cidade. Mas desde a aprovação da lei nº 13.022/2014 às atribuições da Guarda Municipal passaram a ir muito além do que simplesmente proteger o patrimônio público. Função principal, como se infere, não é o mesmo que função exclusiva.

Segundo o Art. 5º do Estatuto, São competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais:

I – zelar pelos bens, equipamentos e prédios públicos do Município; II – prevenir e inibir, pela presença e vigilância, bem como coibir, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais; III – atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais; IV – colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social; V – colaborar com a pacificação de conflitos que seus integrantes presenciarem, atentando para o respeito aos direitos fundamentais das pessoas; VI – exercer as competências de trânsito que lhes forem conferidas, nas vias e logradouros municipais, nos termos da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), ou de forma concorrente, mediante convênio celebrado com órgão de trânsito estadual ou municipal; VII – proteger o patrimônio ecológico, histórico, cultural, arquitetônico e ambiental do Município, inclusive adotando medidas educativas e preventivas.

Como assinalamos em negrito, a lei de 2014 enfatizava a limitação desta atuação aos bens, serviços e instalações municipais. A lei nº 13.022/2014 estabelece ainda uma série de outras atividades para as guardas, mas sem mencionar o policiamento ostensivo – e suas implicações lógicas como o poder de parar e revistar pessoas. São antes atividade preventivas e administrativas tais como:

VIII – cooperar com os demais órgãos de defesa civil em suas atividades; IX – interagir com a sociedade civil para discussão de soluções de problemas e projetos locais voltados à melhoria das condições de segurança das comunidades; X – estabelecer parcerias com os órgãos estaduais e da União, ou de Municípios vizinhos, por meio da celebração de convênios ou consórcios, com vistas ao desenvolvimento de ações preventivas integradas; XI – articular-se com os órgãos municipais de políticas sociais, visando à adoção de ações interdisciplinares de segurança no Município; XII – integrar-se com os demais órgãos de poder de polícia administrativa, visando a contribuir para a normatização e a fiscalização das posturas e ordenamento urbano municipal; XIII – garantir o atendimento de ocorrências emergenciais, ou prestá-lo direta e imediatamente quando deparar-se com elas; XIV – encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário; XV – contribuir no estudo de impacto na segurança local, conforme plano diretor municipal, por ocasião da construção de empreendimentos de grande porte; XVI – desenvolver ações de prevenção primária à violência, isoladamente ou em conjunto com os demais órgãos da própria municipalidade, de outros Municípios ou das esferas estadual e federal; XVII – auxiliar na segurança de grandes eventos e na proteção de autoridades e dignitários; e XVIII – atuar mediante ações preventivas na segurança escolar, zelando pelo entorno e participando de ações educativas com o corpo discente e docente das unidades de ensino municipal, de forma a colaborar com a implantação da cultura de paz na comunidade local.

Outra etapa importante nesse processo de ampliação de competências das Guardas Municipais foi a LEI Nº 13.675, DE 11 DE JUNHO DE 2018 – ou Lei do SUSP, onde a palavra Município aparece 20 vezes no texto. Assim, no Art. 2º, lê-se que “A segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos, compreendendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Munícipios, no âmbito das competências e atribuições legais de cada um.” As guardas aparecem como integrantes operacionais do sistema único (art. 9) e os Municípios como integrantes estratégicos.

As operações policiais ostensivas da Guarda são admissíveis nesta lei (inclusive as investigativas e de inteligência!), desde que planejadas em equipe, “no limite de suas competências” e, ainda, segundo o art. 16., os órgãos integrantes do Susp poderão atuar em vias urbanas, rodovias, terminais rodoviários, ferrovias e hidrovias federais, estaduais, distrital ou municipais, portos e aeroportos, no âmbito das respectivas competências, em efetiva integração com o órgão cujo local de atuação esteja sob sua circunscrição. Já não fica clara aqui a limitação aos bens, serviços e equipamentos municipais nesta atuação das guardas.

Estas discrepâncias entre o que diz a Constituição e o que dizem posteriormente o Estatuto e a Lei do Susp geraram entendimentos diferentes sobre as competências das guardas, de modo que alguns casos foram parar na Justiça, obrigando os tribunais a se manifestar diante de casos concretos. Ainda em 2014, ano de criação do Estatuto, a Feneme (Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais) entrou com uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) no STF (Supremo Tribunal Federal) alegando que a lei 13.022/2014 fez com que as guardas municipais invadissem a competência das polícias e deixassem de ser apenas um serviço de vigilância do patrimônio municipal. Em maio do mesmo ano, o ministro Gilmar Mendes negou a continuidade do processo com a justificativa de que a Feneme não tinha legitimidade para propor uma ADI, ação que deve ser aberta por “confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”, sem entrar no mérito da questão.

Em 2016, após ação movida pelo Ministério Público contra a Prefeitura de Araçatuba (SP), a Justiça de São Paulo decidiu em primeira e segunda instâncias que a Guarda Municipal da cidade não poderia revistar cidadãos, entendendo que tal atuação extrapolaria o escopo previsto em lei. Segundo consta no processo, a ação foi movida depois que o então comandante da Guarda Municipal de Araçatuba disse à imprensa que faria revistas e citou justamente a lei 13.022/2014 como suposto respaldo para esse tipo de abordagem. Conforme a interpretação do STJ dada na ocasião, “a guarda municipal, por não estar entre os órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da CF, não pode exercer atribuições das polícias civis e militares. A sua atuação da guarda municipal deve se limitar à proteção de bens, serviços e instalações do município”. STJ. 6ª Turma. REsp 1977119-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 16/08/2022 (Info 746).

Uma mudança importante ocorreu em agosto de 2023, quando o STF estabeleceu que “Guardas Municipais são órgãos de segurança pública”, argumentando em favor da não taxatividade do rol do artigo 144. Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes destacou que as guardas municipais têm entre suas atribuições o poder-dever de prevenir, inibir e coibir infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais“Trata-se de atividade típica de segurança pública exercida na tutela do patrimônio municipal”, ressaltou.

Posteriormente, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Guarda Municipal, apesar de integrar o sistema de segurança pública – conforme afirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 995, em agosto último –, não possui as funções ostensivas típicas da Polícia Militar nem as investigativas próprias da Polícia Civil. Assim, em regra, estão fora de suas atribuições atividades como a investigação de suspeitos de crimes que não tenham relação com bens, serviços e instalações do município. A Terceira Seção do STJ definiu que, “salvo na hipótese de flagrante delito, só é possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal[5] se, além de justa causa para a medida (fundada suspeita), houver pertinência com a necessidade de tutelar a integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, assim como proteger os seus respectivos usuários”.

A evolução mais recente da questão veio recentemente (fevereiro de 2025) quando o STF julgou uma ação de 2004 em que o TJ-SP contestava uma lei municipal de São Paulo, que atribuía à Guarda a capacidade de fazer policiamento preventivo e comunitário, ainda que limitado aos bens e serviços municipais – Tema 656 referente à lei 13.866/04 do município de São Paulo. Em 20/2 fomos surpreendidos pelo STF com uma tese de repercussão geral que vai além do que a Guarda Municipal de São Paulo pretendia originalmente, praticamente liberando o policiamento ostensivo (e) comunitário para as guardas, independente da limitação aos bens, equipamentos e serviços municipais.

A tese aprovada pela maioria do STF é a seguinte:

“É constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas guardas municipais, inclusive o policiamento ostensivo e comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública previstas no artigo 144 da Constituição Federal e excluída qualquer atividade de polícia judiciária, sendo submetidas ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, nos termos do artigo 129, inciso 7º, da Constituição Federal. Conforme o artigo 144, parágrafo 8º, da Constituição Federal, as leis municipais devem observar normas gerais fixadas pelo Congresso Nacional”. 

Observe-se que em parecer enviado ao Supremo, o MPF enfatizou a necessidade de deixar de fora das atribuições das guardas municipais as atividades que extrapolassem a proteção dos bens, serviços e instalações municipais – como as de policiamento ostensivo fora desse contexto, mas não foi esse o entendimento da maioria dos ministros.

A nova tese provocou um reboliço, mobilizando prefeitos, que querem chamar suas guardas de polícias municipais, foi comemorada pelas entidades das guardas – que já fazem de fato policiamento há décadas – e contestada pelas entidades vinculadas às policiais militares, que já anunciaram que pretendem recorrer à Justiça para que se esclareçam os termos da decisão.

Confirmada a interpretação, muitas outras mudanças precisarão ser feitas no que tange à seleção, treinamento, armamento, manuais de procedimento, fiscalização, responsabilização e diversos outros aspectos. É possível dizer que são poucas hoje as guardas que tem condições de assumir estas novas responsabilidades. Ao mesmo tempo, o ganho de novas atribuições propriamente policiais se fará, infelizmente, em detrimento de alternativas e políticas de segurança de caráter preventivo. Há quem pense que o fato de não poder fazer policiamento ostensivo, revistas, buscas ou mesmo, como antigamente, portar armas, não era uma limitação, mas antes uma vantagem – que dava as guardas uma identidade diferenciada, uma imagem mais amigável e maior legitimidade para o apaziguamento dos conflitos sociais.

O fato é que a escalada nacional da violência e da sensação de insegurança parece estar contribuindo para moldar uma interpretação cada vez mais abrangente do papel das guardas na segurança, processo que como vimos se acelerou nas últimas décadas. Segurança pública é uma das principais preocupações da população e esse contexto ajuda a entender a decisão do STF, baseada no princípio jurídico da eficiência.

Vimos que, em julgamento precedente sobre a matéria, por ocasião da aqui já citada ADPF 995, a Suprema Corte já reconhecia expressamente as Guardas Municipais como integrantes do Sistema de Segurança Pública. E para sanar qualquer dúvida quanto a isso, o Ministério da Justiça incluiu na PEC da segurança a proposta para explicitar as Guardas no rol das forças de segurança.

Naquela oportunidade, o STF analisava, a pedido da Associação dos Guardas Municipais do Brasil, interpretações que se verificavam em diferentes Tribunais do País em torno da Lei Federal 13.675/18, a qual disciplina a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, cria a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp).

Foi relator para a matéria o ministro Alexandre de Moraes, promotor público de formação e ex-secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, operador do Direito, portanto, com larga experiência na matéria apreciada pela Suprema Corte. A ação promovida pela Associação foi julgada totalmente procedente por maioria para, “nos termos do artigo 144, §8º da CF, CONCEDER INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO aos artigos 4º da Lei 13.022/14 e artigo 9º da 13.675/18 DECLARANDO INCONSTITUCIONAL todas as interpretações judiciais que excluam as Guardas Municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública.”

Na tramitação da ação, a presidência da República defendeu a improcedência do pedido formulado pela associação, “tendo em vista que a Constituição Federal prevê as guardas municipais no § 8º do art. 144, não as incluindo no rol taxativo dos órgãos de segurança pública.” A Advocacia Geral da União defendeu, na mesma linha, que “o rol previsto pelos incisos I a VI do artigo 144 da Constituição Federal é exaustivo, o que inviabiliza a conclusão de que as guardas municipais integram os órgãos de segurança pública.”

No voto que conduziu o julgamento, o relator, ministro Alexandre de Moraes, fez um retrospecto de diversas decisões judiciais que iam de encontro à ação proposta pela associação, inclusive as decisões aqui referidas oriundas do Superior Tribunal de Justiça. Esta jurisprudência caminhava no sentido de proibir a extensão do rol de atribuições da Guarda Municipal, com expressa referência ao dispositivo constitucional que as excluiu do rol de órgãos encarregados da segurança pública.

Ao decidir pela ampliação do rol previsto no art. 144 da Constituição, o relator do acórdão, seguido pela maioria, iniciou as suas ponderações apontando a presença constitucional do princípio da eficiência. Segundo se decidiu, o combate à crescente criminalidade reclamaria por parte dos agentes públicos a aplicação de políticas eficientes, no que se incluiria o aumento do rol de órgãos de segurança para nele também incluir as Guardas Municipais. O argumento da eficiência era conclamado pelo relator e consequentemente pelo próprio STF como justificativa para conferir às guardas municipais poderes mais amplos em nome do combate à criminalidade.

Sem nenhum espanto, a Corte se valia de um argumento sem dúvida pragmático para justificar uma interpretação mais alargada do dispositivo constitucional.

O pragmatismo como pressuposto da interpretação do princípio fica bastante evidente no trecho em que o relator destaca: “Esse mínimo exigido para a satisfação da eficiência pelo Poder Público adquire contornos mais dramáticos quando a questão a ser tratada é a segurança pública, em virtude de estar em jogo a vida, a dignidade, a honra, a incolumidade física e o patrimônio dos indivíduos.”

A orientação da decisão com base em um argumento prático fica ainda mais clara no seguinte trecho do acórdão: “A eficiência na prestação da atividade de segurança pública é garantia essencial para a estabilidade democrática no País, devendo, portanto, caracterizar-se pelo direcionamento da atividade e dos serviços públicos à efetividade do bem comum, eficácia e busca da qualidade.”

Diversos dados de realidade, como estatísticas sobre a atuação das Guardas Municipais, foram utilizados pelo STF não para condenar possíveis atuações fora do escopo constitucional, mas, pelo contrário, para justificar a sua inclusão dentro do rol de órgãos de segurança pública. Para além destes dados, foram destacados pelo STF no julgamento desta ADPF inúmeras outras decisões que, paulatinamente, atribuíam às guardas papel que não se limitava a proteção de bens e patrimônio público. O Supremo reconhecia, então, que a ampliação do rol de atividades das guaras municipais já vinha sendo verificada ao longo do tempo a partir de decisões do próprio Supremo, como, por exemplo, em casos envolvendo infrações de trânsito.

Na prática, portanto, desde o julgamento da ADPF 995, às guardas municipais foram atribuídas competências para atuação mais amplas que rol previsto no art. 144 da CF, reconhecido pela Suprema Corte como não taxativo.

Parece-nos bastante claro que a decisão do STF na ADPF 995, agora reforçada pelo julgamento do RE 608588 (Tema 656), foi construída a partir de fundamentos que não se prendem exclusivamente ao texto constitucional. E nisso parece não haver qualquer espanto. A Suprema Corte é, além de guardiã da Constituição Federal, uma corte política, no sentido de que a ela são atribuídas competências que, sob a roupagem de interpretação constitucional, significam a interferência clara em políticas públicas.

Aqui, esta função fica bastante evidente quando, atuando verdadeiramente como legislador positivo, o Supremo se vale de interpretação ampliativa para atribuir às guardas municipais funções que nem a Constituição Federal, nem as leis de regência, parecem lhe atribuir. Como se viu no julgamento pretérito sobre a matéria (ADPF 995), questões de fato relacionadas ao tema da segurança pública foram expressamente consideradas na ratio da decisão.

Essa racionalidade aparece de maneira clara na própria ementa do julgado, quando a Suprema Corte conclui: “É evidente a necessidade de união de esforços para o combate à criminalidade organizada e violenta, não se justificando, nos dias atuais da realidade brasileira, a atuação separada e estanque de cada uma das Polícias Federal, Civis e Militares e das Guardas Municipais; pois todas fazem parte do Sistema Único de Segurança Pública.”

Tais argumentos vêm à tona agora por ocasião do julgamento do recurso extraordinário aqui referido. Uma vez mais, o Supremo adota interpretação ampliativa do texto constitucional para reforçar as atribuições da Guarda Municipal anteriormente já definidas. Considerações em torno da criminalidade compõem o fundamento da decisão, o que significa dizer que o STF, a pretexto de tão só interpretar a Constituição Federal, participa de algum modo da própria formulação das políticas de segurança pública, permitindo que os municípios passem a desempenhar papel mais presente no combate ao crime.

Tanto isso é verdade que, em diversos municípios de São Paulo, o próprio nome da Guarda Municipal foi alterado para Polícia Municipal, a revelar o princípio de uma profunda alteração que se avizinha e que certamente ainda vai gerar bastante controvérsia. Evidência disso é que, segundo noticia a imprensa, a Justiça de São Paulo já derrubou até o momento quatorze leis municipais que promoviam esta mudança de nomenclatura.

Este é apenas um pequeno exemplo de como o tema será doravante tratado e é revelador de como a decisão do STF sobre a matéria é um exemplo definitivo sobre como suas decisões ultrapassam a mera interpretação normativa para alcançar, de modo direto, a formulação de políticas públicas.

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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