Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
A Justiça Eleitoral registrou mais de 458 mil candidaturas a prefeitos e vereadores para estas eleições municipais de 2024. Apesar da proximidade da disputa, 421 mil candidaturas ainda aguardam julgamento e apenas algumas centenas foram indeferidas ou tiveram pedido não reconhecidos pela Justiça.
Mais do que uma alta probabilidade, é quase uma certeza estatística de que entre os candidatos temos pessoas envolvidas com o crime organizado. Algumas candidaturas serão barradas e outras deferidas. Das deferidas, algumas podem ser eleitas. O grande problema aqui é que não conhecemos estas quantidades e ficamos sabendo destas tentativas de infiltração nas eleições apenas por meio de casos que chegam à justiça e aos meios de comunicação. Mas não sabemos quantas conseguiram ultrapassar as barreiras de fiscalização.
Casos notórios de envolvimento direto com o crime podem ser barrados, mas a grande dificuldade é identificar a candidatura de laranjas e financiados com recursos do crime, por traz da aparente ficha limpa. Nas eleições de 2024, pela primeira vez a Polícia Federal diz contar com “grupos especializados, destacados da Polícia Federal, com a missão única e exclusiva de monitorar os candidatos e a eventual relação deles com o crime organizado”.
Fonte: TSE – base baixada em 23 de agosto de 2024
Os incentivos ao ingresso na política são muitos: municípios controlam orçamentos vultosos e realizam licitações milionárias de lisura muitas vezes duvidosa. Representantes do crime organizado podem influenciar políticas, direcionar recursos públicos, facilitar negócios, corromper funcionários públicos. O universo da política no Brasil há muito tempo frequenta as páginas policiais.
No Brasil, a fiscalização das candidaturas aos cargos eletivos cabe à Justiça Eleitoral, que é composta pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), os juízes eleitorais e as Juntas Eleitorais.
Dada a magnitude do processo, é muito difícil para a justiça eleitoral identificar e barrar candidaturas ligadas ao crime organizado, uma vez que ela não conta com unidades de investigação, dados ou expertise para realizar um trabalho proativo. Basicamente, o que a Justiça Eleitoral faz é verificar se a documentação do candidato está correta do ponto de vista processual legal. Nenhuma investigação social, nenhuma consulta ao Coaf ou análise de evolução patrimonial, nenhum cruzamento de dados, nenhuma verificação de fatos declarados ou busca por inconsistências ou outras práticas investigatórias.
No Brasil, o registro de candidatura pode ser indeferido pela Justiça Eleitoral em uma série de situações previstas na legislação. O principal marco legal que orienta esses casos é a Lei Complementar nº 64/1990, conhecida como Lei das Inelegibilidades, modificada posteriormente pela Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010). A Lei da Ficha Limpa estabeleceu que candidatos condenados por órgãos colegiados (como tribunais) em crimes graves, como corrupção, abuso de poder econômico ou político, lavagem de dinheiro, crimes contra a administração pública, entre outros, são inelegíveis por um período de oito anos. Em razão do princípio da presunção da inocência, a regra só vale em caso de condenação definitiva, e mesmo quem esteja respondendo a processos na Justiça pode se candidatar.
A falta de documentos essenciais, como certidões criminais e declaração de bens também pode resultar no indeferimento. Se for comprovada falsidade nas informações prestadas, isso pode impedir o registro. Para burlar estes requisitos formais a estratégia é investir em candidaturas formalmente adequadas, embora um exame mais detalhado e aprofundado destes documentos já pudesse contribuir para barrar muitas candidaturas.
Analisando as doações eleitorais nas eleições municipais de 2016 no Rio, o TSE identificou que das 730 mil doações, “300 mil apresentaram problemas junto à Receita Federal porque os doadores não tinham renda compatível para doações”, problema acirrado após a proibição de doações por pessoas jurídicas. Estamos falando em 41% de doações suspeitas! A análise sistemática das doações deveria ser norma e é preciso repensar seriamente, mais uma vez, a questão do financiamento das eleições no Brasil, de forma a conter o risco do financiamento pelo crime organizado e milícias. Ainda que impopular, a ideia do financiamento público das eleições deve ser pensada não apenas como uma forma de diminuir a influência do dinheiro nas eleições, venha ele de empresas, lobbies de empresas de armas e bets ou do crime organizado e milícias. Algumas regras eleitorais, sobre financiamento de campanha ou listas partidárias devem talvez ser repensadas, tendo em vista o risco de infiltração do crime nas campanhas.
Algo que tem sido negligenciado, os partidos políticos também poderiam contribuir mais para separar o joio do trigo. Candidaturas precisam ser aprovadas em convenções partidárias e respeitar as normas internas de cada partido. E candidatos que não respeitam essas regras podem ter suas candidaturas indeferidas pelo partido. As normas internas dos partidos políticos são regulamentos e diretrizes estabelecidos por cada um para organizar e disciplinar suas atividades, incluindo o processo de escolha de seus candidatos para as eleições.
Muitos partidos exigem que os candidatos estejam filiados ao partido por certo período antes de poderem se candidatar. Os partidos podem ter critérios específicos para selecionar seus candidatos, como análise de currículos, entrevistas, e avaliações de histórico político e moral, mesmo quando não exigidos expressamente pela justiça eleitoral. Assim por exemplo, partidos podem estabelecer quotas internas mais rigorosas para promover a representatividade feminina e de outros grupos minoritários, para além dos critérios legais. Normas internas podem exigir que os candidatos apresentem relatórios regulares de gastos de campanha para a liderança do partido, além do que é exigido pela Justiça Eleitoral. Ou seja, as regras eleitorais podem ser um mínimo necessário e não um critério absoluto para algumas exigências.
Os partidos políticos podem estabelecer normas internas que exijam que seus candidatos não tenham processos na Justiça, mesmo que ainda não tenham sido condenados? Essa prática, embora não seja obrigatória pela legislação eleitoral brasileira, pode ser adotada pelos partidos como uma medida de precaução para preservar sua imagem pública, promover transparência e garantir a ética entre seus membros. Essa exigência pode ser vista como um compromisso proativo com a integridade, acima e além do que é legalmente requerido.
Exigir que candidatos não tenham processos em andamento, mesmo sem condenação, pode ser visto como uma violação do princípio da presunção da inocência. Mas, em tese, os partidos têm a autonomia para definir suas próprias normas internas, e essa exigência não configura uma ilegalidade. A aplicação desta exigência precisaria ser baseada em critérios objetivos para evitar o uso arbitrário das normas internas. Por exemplo, definir claramente quais tipos de processos ou acusações são considerados impeditivos para candidatura pode ajudar a evitar abusos e garantir uma aplicação justa da regra.
Candidatos geralmente precisam demonstrar alinhamento com os princípios e a plataforma do partido e normas internas podem prever a análise de discursos, postagens, entrevistas e ações passadas dos candidatos para garantir essa compatibilidade. Muitos partidos têm um código de ética que os candidatos devem respeitar. O problema é que assim com a Justiça Eleitoral, os partidos não contam com regras internas objetivas, códigos de ética ou com uma estrutura organizada para fazer estas verificações a fundo.
O fato é que alguns casos recentes de tentativas de infiltração de candidatos ligados ao crime organizado nas eleições – diretamente ou através de financiamento -, mostram que não estamos apenas diante de uma possibilidade, mas já de uma realidade, cuja significância não conseguimos estimar. É preciso que tanto a Justiça Eleitoral quantos os partidos políticos, Ministério Público e polícias desenvolvam práticas e estruturas aptas a limitar estas tentativas de infiltração.
A infiltração do crime organizado na política representa uma grave ameaça para a sociedade, comprometendo a integridade das instituições democráticas, a segurança pública, o desenvolvimento econômico e a coesão social. Ela implica em desvios de recursos públicos, aumento de custo e perda de eficiência dos projetos e serviços, perda de confiança nas instituições, coação e intimidação de eleitores e funcionários públicos, formulação de políticas públicas favoráveis ao crime, obstrução de medidas de combate ao crime, manipulação de contratos e licitações, piora do ambiente de negócios, entre outras consequências deletérias.
Em longo prazo, talvez ainda mais relevante, o processo democrático é subvertido, uma vez que as eleições deixam de ser um reflexo da vontade livre e legítima do povo, sendo manipuladas para atender aos interesses de grupos criminosos. A influência do crime organizado na política pode corroer os valores democráticos fundamentais, como a justiça, igualdade perante a lei, e a transparência, conduzindo a um regime de governança caracterizado pela impunidade e pela ilegalidade.
O fato é que alguns casos recentes de tentativas de infiltração de candidatos ligados ao crime organizado nas eleições – diretamente ou através de financiamento -, mostram que não estamos apenas diante de uma possibilidade, mas já de uma realidade, cuja significância não conseguimos estimar. O problema não está na quantidade de casos, que é anedótica diante de 458 mil postulantes, mas na seriedade das implicações. É preciso que tanto a justiça eleitoral quantos os partidos políticos, Ministério Público e polícias desenvolvam práticas e estruturas aptas a limitar estas tentativas de infiltração. Antes de PCC, CV, FDN, etc. se transformem em novas siglas no já complicado quadro partidário brasileiro.
ESTE ARTIGO FOI PARCIALMENTE ESCRITO COM AJUDA DE I.A.
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