José Paulo Cavalcanti Filho, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e colaborador do Espaço Democrático
Edição: Scriptum
Lisboa. Encerro, aqui, essa pequena série sobre histórias da redemocratização do Brasil, naqueles distantes anos. Vamos a elas:
PODER ABSOLUTO. Começo por quando tudo começou, nos tempos da Redentora. Em Santiago do Chile, Adão Pereira Nunes, Fernando Gasparian (que contou essa história), Fernando Henrique Cardoso, Tiago de Mello, entre outros exilados. Alguns já então condenados, outros quase. Darcy Ribeiro contou como, no fim do Governo Jango, se sentiu com “poderes imperiais”. É que o presidente da República voara para o sul do País ‒ acompanhado pelo chefe da Casa Militar, o general Assis Brasil. O ministro da Marinha, Pedro Paulo de Araújo Suzano, pediu demissão. O ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, gravemente enfermo, estava no hospital. O que fazia de Darcy, chefe da Casa Civil, o comandante supremo das Forças Armadas. E, ao grupo, declarou
‒ Foi quando tive a agradável sensação do poder absoluto.
Após o que Celso Furtado concluiu
‒ Agora está explicado por que estamos aqui.
Dado o Golpe Militar, em 01/04, o bravo Darcy ainda ficou três dias sozinho dentro do Palácio, para resistir, até de lá ser retirado por Waldir Pires.
A BOMBA. Nesse mesmo 1964 vinha caminhando tranquilo, pela Rua do Hospício, Karl Marx Guimarães Coelho. Já na calçada do 4º Exército (em frente à Faculdade de Direito do Recife), um militar considerou suspeita sua bolsa e perguntou
‒ O que tem aí dentro?
‒ Nada.
– Quero ver.
E encontrou, lá, uma nota – “comprar fios e bobinas para a bomba”. Perguntou o nome do cidadão
‒ Karl Marx.
Era demais. Com certeza, comunista. E uma bomba, com certeza terrorista. Foi preso. Sem ter tempo de explicar que se tratava de bomba compressora para um ar-condicionado que estava consertando. Apanhou tanto que passou três meses no hospital. Viva a Democracia.
UM ESTUPROZINHO. Passa o tempo, vem a Transição, e o país se preparava para a posse que seria de Tancredo e acabou de Sarney. Estávamos todos juntos, nessa reunião com ele. O ministro da Justiça da Ditadura, Ibrahim Abi-Ackel, tentava ser simpático. Até chamou seu sucessor, Fernando Lyra, de jurista. E Lyra confirmou, todo prosa,
– Sou mesmo e de Caruaru!
Vendo Ruth (Maria Rita, de nascença) Escobar chegar, quis fazer as pazes com ela.
– Dona Ruth, preciso explicar. Nunca lhe deixei representar peças de teatro, nas prisões, pensando em sua segurança.
– Como?
– É que os presos, lhe vendo, iriam ficar com alguma fixação sexual. E nas ruas, daqui a dez anos, poderiam querer lhe estuprar.
– Agora é que não lhe desculpo mesmo, ministro. Pois um estuprozinho, comigo dez anos mais velha, seria muito bom.
O HINO. 21 de abril de 1985. Tancredo morto e Fafá de Belém cantou, nas tvs, o Hino Nacional sem nenhum instrumento acompanhando. Com muita emoção. E queria fazer o mesmo num disco. Ocorre que não podia, segundo a gravadora, a partir de interpretação equivocada da Lei 5.700/71.
Assinei parecer autorizando. Porque a exigência de “andamento metronômico de uma semínima igual a 120, em tonalidade si bemol” (art. 24), era só para “Sessões Cívicas” (art. 25). E o disco saiu. Dedicado a mim, beijos Maria de Fátima.
Fevereiro de 1986. Transmissão do cargo de ministro da Justiça. Tomaria posse Paulo Brossard, para Brizola um “Rui Barbosa em compota”. Lyra, o ministro da Justiça que partia, gostava muito daquela gravação. E deu ordem
– Na hora da posse, bota o disco de Fafá.
Entrei na conversa
– Perdão, ministro. Mas seu último ato, no ministério, não pode ser uma ilegalidade, que a transmissão do cargo é uma Sessão Cívica.
– Lá vem você, de novo, botando gosto ruim.
– Desculpe.
– Mas Sarney e Brossard vão ficar putos.
– Será ruim, para você.
Pensou um pouco e disse
– Deixe comigo.
– Fernando…
– Confie.
Todos em seus lugares, no auditório, e o locutor convocou autoridades para a mesa: Presidente da República, ministro que sai, ministro que entra, outros ministros, Procurador Geral da República. Só então anunciou
– Formada a mesa, e ANTES de se iniciar esta Sessão Cívica, vamos ouvir o Hino Nacional cantado por Fafá de Belém.
Todos de pé. Ouve-se o Hino, em disco, e o povo chorando. Em seguida,
– Começa, AGORA, a Sessão Cívica da transmissão de posse.
E Lyra, rindo,
– Viu como é?
Saudades de um tempo em que política se fazia com graça, engenho e arte.
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