José Paulo Cavalcanti Filho
Edição: Scriptum
Semana passada, o querido amigo João Humberto Martorelli citou verso do poeta Fernando Pessoa, “O poeta é um fingidor”, em texto no Jornal do Commercio, do Recife. Continuo no tema e já digo que o poema foi escrito em 1º de abril de 1931. Com originais guardados, na Arca do autor, em maço com título Itinerário. Ao companheiro de noitadas e primeiro biógrafo João Gaspar Simões logo manda cópia e dois dias depois rabisca, num papel velho, “é por ser mais poeta que gente que sou louco?” (todos os textos aspeados, sem outras referências aqui, estão nos escritos de Pessoa).
Foi publicado no número 36 da revista Presença, em novembro de 1932. Irene Ramalho Santos constata ser “o poema de Pessoa mais citado e analisado”; e ainda observa que “ao contrário da grande maioria dos poemas de qualquer heterônimo, não é escrito na primeira pessoa do singular”. A dualidade começa no seu próprio título, Autopsicografia, que psicografia é descrição psicológica de uma pessoa e também escrito sugerido por um espírito desencarnado. Para quem (ainda) não conhece, é esse:
O Poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
A ideia não é original. Na Grécia Antiga, Arquíloco (712-664 a.C.), criador dos versos âmbicos (com duas sílabas, uma curta, outra longa), escrevera “seco de inspiração, mas não de sentimento”; enquanto, em 1635, o militar e sacerdote espanhol (Pedro) Calderón de La Barca (1600-1681), no seu La vida es sueño y los sueños sueños son, disse: “O poeta que em grã dor não teve sorte/ Chora fingindo, e toca-nos tão fundo”. São muitas as interpretações para tais versos.
Considerando que “fingir a qualidade de uma dor que deveras se sente é aquilo que se atinge quando o fingimento é mais completo” ‒ assim o tem Manuel Gusmão. Ou sugerindo que “não se trata de simular, mas de sublimar, que o leitor não sabe nada acerca do sentimento do poeta” ‒ segundo August Willemsen. Ou indicando “o reconhecimento da dor como base imprescindível da criação poética”, incorporando esse fingimento ao seu próprio estilo ‒ palavras de Gaspar Simões. Agora, o mestre Martorelli os acompanha sugerindo se tratar de “hipocrisia, cinismo, deslealdade”.
Todos considerando “fingir”, acabamos de ver, como o ato de falsear a realidade. A quem leia o poema com essa percepção, bom lembrar advertência do próprio Pessoa: “A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele; deduzindo-se parecer, dito segundo sentido, do fato de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz”. Sigamos nessa trilha.
Para começar, já se pode perceber que o problema desse aparente equívoco pode ser pressentido em sua simples leitura. E está na primeira estrofe. Posto que se o poeta finge uma dor é porque não a sente “deveras”; ou, em sentido contrário, se a sente mesmo de verdade, então é que (ao menos) a partir desse momento não finge. Pouco importando que, no começo fingida, tenha mesmo a dor se convertido fisicamente em real; porque, a partir do momento em que passa a ser real, em que é sentida fisicamente, então deixa de ser fingida. Sendo impossível à frágil condição humana fingir, e ao mesmo tempo não fingir, uma única e mesma dor. A explicação estaria, portanto, não nos sentimentos do poeta; mas no fato de que, com enorme frequência, Pessoa escrevia por códigos. Brincando com o preciso, ou impreciso, sentido das palavras.
Dando-se que o verbo fingir teria no texto, diferentemente do seu significado hoje corrente, o sentido de exprimir. Ou ainda mais propriamente, e retomando seu significado arcaico, o de construir. Mário Sacramento, como os amigos Cleonice Berardinelli e Richard Zenith, também assim consideram. Fingir vem do latim fingere, equivalente a modelar em barro, esculpir, formar, construir.
Com este preciso sentido de construir está, inclusive, no provérbio latino Humus de qua finguntur pocula (Terra de que se fazem os corpos). Ou na bem conhecida expressão, própria da língua portuguesa, areia de fingir ‒ aquela de jazida, branca, que se usa para fazer argamassa. Areia de construir, portanto. E, no fundo, que seria o fingimento senão a construção de uma nova realidade? Sem contar que, segundo o próprio Pessoa, “a única arte verdadeira é a da construção”.
Não só isso. A explicação, como veremos, talvez seja mais simples ainda. Comecemos por lembrar que a partir de fins do século XIX, e até os anos 1940, tivemos o apogeu da belle époque por toda a Europa. Em Portugal também. As casas eram decoradas, num estilo art nouveau, com paredes das salas pintadas à mão reproduzindo cenas de natureza ou caça. Tetos ornados com arabescos em gesso. Por fora, fachadas tinham requintes elaborados imitando esculturas em pedra. Sem que se pudesse usar gesso, nessas obras externas, dada sua fragilidade ante as intempéries. Para isso, usava-se uma argamassa feita com cimento e aquela areia finamente crivada (de fingir), à qual se misturava cal em pó.
Essas fachadas em pedra eram trabalhadas com instrumentos conhecidos como colheres (ou colherinhas) de fingir, algumas com apenas cinco a sete centímetros de comprimento, ainda hoje encontradas no mercado. Tenho uma, em casa, para quem quiser saber como era. Os artistas que se especializaram nesse tipo de ornamentos acabaram conhecidos, em Lisboa, como fingidores. Assim foi até que, dado o custo de manter tanto luxo, ditos adereços foram aos poucos desaparecendo. E a profissão perdendo adeptos. Só que Pessoa, com absoluta certeza, ao tempo em que escreveu seu poema, conhecia bem ditos profissionais. E, por isso, terá usado uma metáfora ‒ a de ser, o poeta, só um fingidor. Um construtor. Como aqueles artesões. Até construindo ele próprio, como poeta, as dores que sentia.
Em carta a Francisco Costa (10.08.1925), resume esse processo: “A arte é expressão de um pensamento através de uma emoção. Pouco importa que sintamos o que exprimimos; basta que, tendo-o pensado, saibamos fingir sem tê-lo sentido” ‒ aqui usada, essa palavra, em seu significado hoje atual. Algo mesmo natural em quem proclama que “toda sinceridade é uma intolerância” e se diverte inventando “novos tipos de fingir”. Por ser “uma criatura de sentimentos vários e fictícios”, já não lhe bastam as angústias do mundo. Ou estas não têm a delicadeza, a generosidade ou a amplidão pelas quais seu incandescente coração anseia. O poeta, então, nada finge (no sentido atual da expressão), apenas constrói as dores que depois sente de verdade.
Pensando no Brasil, para terminar, poderíamos dizer que boa parte de nossos homens públicos fingem no sentido hoje corrente e vulgar da palavra; enquanto os poetas, iluminados e predestinados, esses fingem em outro sentido, aquele usado por Pessoa (como aqui expresso); o de construir, com seus versos, uma nova realidade ‒ diferente, espantosa e bela. É isso.
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