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{ ARTIGO }

O técnico Tite e a ética na política

Se as circunstâncias mudam, não há porque permanecer amarrado a declarações dadas em circunstâncias distintas, escreve Rogério Schmitt

 

Rogério Schmitt, cientista político e colaborador do Espaço Democrático

Edição: Scriptum

 

O treinador da seleção brasileira nas duas últimas Copas do Mundo de futebol masculino – o gaúcho Tite – assumiu oficialmente o comando da equipe do Flamengo no último dia 9 de outubro, após algumas semanas de negociações. A contratação do técnico pelo clube mais popular do País foi cercada por uma interessante polêmica, que utilizarei, no entanto, apenas como gatilho para tratar de um tema bem tradicional da teoria política.

O motivo da polêmica foram duas entrevistas concedidas por Tite no segundo semestre do ano passado, ainda enquanto treinava a seleção brasileira. Em agosto de 2022, no Flow Podcast, afirmou que “toda equipe brasileira que pensar no Tite como técnico, esquece, ele não vai treinar. Pode escrever onde vocês quiserem, me chamem de mentiroso e sem palavra, que não vai ter”. Algum tempo depois, em outubro, Tite declarou ao Lance! o seguinte: “Não vou trabalhar no Brasil no ano que vem. Definitivamente. Não vou. Tenho a minha palavra. ‘Ah, reconsiderei porque… Não, não tem reconsiderar’”.

Muitos jornalistas esportivos e torcedores chamaram a atenção para uma alegada contradição entre as declarações de Tite em 2022 e a decisão de treinar o Flamengo em 2023. O técnico não teria pecado pela falta de ética ao não cumprir a sua própria promessa?

E é justamente nesse ponto que acredito que a moderna teoria política pode nos ajudar. Vou recorrer a um dos autores mais citados no debate sobre a relação entre a ética e a política: o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920). Weber nos apresentou a clássica distinção entre o que chamou de a “ética da convicção” (o conjunto de normas e valores que orientam o comportamento de todos nós na esfera privada) e a “ética da responsabilidade” (o conjunto de normas e valores que orientam a decisão dos políticos a partir de suas posições como governantes ou legisladores).

Segundo Weber, quanto maior for o nosso grau de inserção na arena política, maior será o afastamento entre as nossas convicções pessoais e a adoção de comportamentos orientados pelas circunstâncias. Em sua famosa conferência “A política como vocação”, organizada em 1919 pela Universidade de Munique, Weber escreveu que “Não podemos prescrever a ninguém que deva seguir uma ética de fins absolutos ou uma ética de responsabilidade, ou quando uma e quando a outra (…) Uma ética de fins últimos e uma ética de responsabilidade não são contrastes absolutos, mas antes suplementos, que só em uníssono constituem um homem genuíno – um homem que pode ter a vocação para a política”.

Nesta mesma fonte, encontramos outra célebre passagem weberiana: “Pode-se dizer que há três qualidades determinantes do homem político: paixão, sentimento de responsabilidade e senso de proporção. Paixão no sentido de ‘propósito a realizar’, isto é, devoção apaixonada a uma ‘causa’ (…) Com efeito, a paixão apenas, por sincera que seja, não basta. Quando se põe a serviço de uma causa, sem que o correspondente sentimento de responsabilidade se torne a estrela polar determinante da atividade, ela não transforma um homem em chefe político. Faz-se necessário, enfim, o senso de proporção, que é a qualidade psicológica fundamental do homem político. Quer isso dizer que ele deve possuir a faculdade de permitir que os fatos ajam sobre si no recolhimento e na calma interior do espírito, sabendo, por consequência, manter à distância os homens e as coisas (…) Há um inimigo vulgar, muito humano, que o homem político deve dominar a cada dia e cada hora: a muito comum vaidade. Ela é inimiga mortal de qualquer devoção a uma causa, inimiga do recolhimento e, no caso, do afastamento de si mesmo”.

Assim, no exercício da atividade política, uma pessoa pode perfeitamente mudar de opinião ao longo do tempo, sem cair em contradição. Se as circunstâncias mudam, não há porque permanecer amarrado a declarações dadas em circunstâncias distintas. É o caso, por exemplo, de promessas feitas com toda a sinceridade durante uma campanha eleitoral que, no entanto, venham a se mostrar inviáveis ou indesejáveis no exercício real do governo.

A ética da responsabilidade é, portanto, tão válida como a ética da convicção. A coerência a ser buscada é também em relação à realidade externa, e não somente em relação aos pensamentos internos. Portanto, ao menos do ponto de vista da teoria política, já está resolvida há mais de um século o tipo de situação vivida pelo técnico Tite (apesar das visíveis diferenças entre a arena política e a arena futebolística).

Vale recordar, finalmente, que as entrevistas de Tite ocorreram antes da Copa do Mundo do Qatar (em novembro e dezembro de 2022), e antes das subsequentes negociações fracassadas do treinador brasileiro em assumir o comando de algum time europeu em 2023. As circunstâncias, portanto, mudaram. Na entrevista coletiva concedida no Ninho do Urubu em 16 de outubro, as palavras do próprio Tite foram “Eu prefiro colocar que foi um ‘ajuste de datas’, respeitando todas as colocações diferentes”. Seria Tite um leitor de Max Weber?

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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