José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
Edição: Scriptum
Lisboa. Não está bem, todos veem. Sigamos no relato de seu fim.
Vinte e sete de novembro, quarta-feira. Depois de um dia comum de trabalho, já quase noitinha, vai ao Martinho da Arcada. Premonitoriamente, desse Martinho disse um dia Sá-Carneiro: “Martinho… Não sei por que, mas esse café ‒ não os outros cafés de Lisboa, esse só ‒ deu-me sempre a ideia dum local onde se vem findar uma vida: estranho refúgio, talvez, dos que perderam todas as ilusões”.
No Martinho da Arcada, Fernando Pessoa vê Almada Negreiros entrar e, demasiado cansado, não se levanta para o cumprimento habitual. Logo senta-se, com eles, Gaspar Simões (que viria, depois, a ser seu primeiro biógrafo). Os amigos estranham o vestir com desleixo, com laço na gravata preta por fazer, tudo tão diferente dos bons tempos. Está agitado e pigarreia muito. Pesam-lhe no corpo todas as dores de todas as angústias. E uma febre que não passa.
“A hora, como um leque, fecha-se.” A irmã Teca faz aniversário no Estoril; mas uma viagem até lá para o jantar, considerando seu estado, era demais ‒ mesmo sabendo que, com essa ausência, rompia uma tradição de muitos anos. Pede ao vendedor de jornais que, em seu nome, mande-lhe um telegrama de parabéns; dando-se que esse homem guardou o dinheiro no bolso e não passou telegrama nenhum.
À noite, bem mais perto, prefere estar na casa do amigo Armando Teixeira Rabelo. Sente cólicas e não dá ciência disso aos presentes. Segundo o querido António Quadros (que com ele fez a revista Orpheu), “teve nesta noite uma grave crise hepática” (para o primo Eduardo Freitas da Costa foi na madrugada de 26 para 27).
Ao sair, cambaleia e ri de uma maneira estranha, que Simões imagina decorrer do álcool. Olha o céu, como quem procura a primeira estrela que eu vejo, para pedir o impossível; e caminha na direção da rua dos Douradores, talvez à procura dos rastros de Bernardo Soares. Seu estado é visivelmente grave. Em Insônia, Álvaro de Campos, premonitoriamente sugere
Ó madrugada, tardas tanto… Vem…
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este,a ser seguido por outra noite igual a esta…
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste.
Vinte e oito de novembro, quinta-feira. “A manhã rompeu, como queda. Desenganemo-nos da esperança. Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio.” O barbeiro Manassés vai ao apartamento, como faz todos os dias, e se horroriza com seu estado físico. Ficam em silêncio, como se Pessoa não tivesse ânimo sequer para conversar. Ou como se nada mais tivessem a dizer.
Apesar disso, mais tarde, consegue se aprontar e ir ao trabalho. O cunhado o procura, preocupado por não ter ido ao aniversário da irmã na noite anterior. Perguntado sobre o telegrama, diz que não chegou; e, vendo-o disposto, imagina estar bem.
No fim do dia, Pessoa volta para casa no seu caminhar tranquilo de sempre. “Sem cambalear”, confirmam António Seixas e Carlos Bate-Chapa, que lembram de tê-lo cumprimentado. À noite, está novamente só. Sente dores e lamenta não ter a quem recorrer. Mas, talvez confiando nas previsões do horóscopo que fez para si mesmo, imagina que logo estará melhor. “Sossega, coração inútil, sossega! Sossega, porque nada há que esperar.”
No ano anterior, em 9 de agosto, escrevera: “Hoje é a quinta-feira da semana que não tem domingo… Nenhum domingo.” Sua última semana seria aquela. E era quinta-feira, como no verso. Houve o domingo dessa semana, claro, “um domingo às avessas” do qual Pessoa já não seria testemunha. “Sempre alguém ao domingo”, ele não, “não no meu domingo”. Seu último dia seria sábado. O depois de amanhã daquela quinta-feira. Em Adiamento, se vê:
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
O porvir…
Sim, o porvir…
Vinte e nove de novembro, sexta-feira. Esse porvir, tão ansiado, afinal se aproxima. “Meu Deus, que fiz eu da vida?” Mais uma vez está sozinho no apartamento. “A vida não tinha dentro.” A irmã continua no Estoril, com uma perna quebrada. Vem-lhe a primeira cólica, bem cedo.
A vizinha de porta, Virgínia Sena Pereira, que o atende nas ausências dessa irmã, diz à família que seu quadro exige cuidados. Não há consenso sobre essa data; segundo o médico Taborda de Vasconcelos, o aviso teria se dado dois dias antes; ou na véspera, para o primo de Pessoa, Eduardo Freitas da Costa e o sobrinho de dona Virgínia (o poeta Jorge de Sena).
Chama-se outro primo de Pessoa (e seu médico), o dr. Jaime Pinheiro de Andrade Neves ‒ “um inútil, diz uma das pessoas próximas”, lembra Robert Bréchon, sem identificar o autor do comentário. Esse primo decide levá-lo ao hospital.
Àquela hora, com ele, também estão o amigo íntimo Armando Rabelo; um companheiro do escritório, Francisco Gouveia; e Carlos Eugênio Moitinho de Almeida, proprietário da Casa Moitinho de Almeida (em que Pessoa trabalhava).
Pede para fazer a barba e chamam seu vizinho Manassés. Lembrando que o telegrama que pediu fosse passado não chegara, no aniversário da irmã, encarece que um dos amigos lhe passe outro. “Vou fazer as malas para o definitivo.” Veste pijama de calça comprida e blusão, amarrado com uma fita na cintura.
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