José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
Edição: Scriptum
Está cada vez pior. Manassés, seu vizinho barbeiro, lhe faz a última barba. Alguns amigos estão com ele.
Pessoa, mal, se prepara para ir ao hospital. Então vai até a estante e retira de lá o menor livro (9 por 13 centímetros) que encontra, Sonetos escolhidos, de Bocage ‒ que, em 1921, lhe havia sido dado “com o respeito que lhe merece o seu talento” pelo prefaciador da obra, o amigo íntimo (Alberto) da Cunha (Dias). Põe o livrinho no bolso direito. Está pronto. Uma automaca (maca montada em automóvel, predecessora das ambulâncias de hoje) o leva embora dessa casa à qual jamais voltaria. “Perdi a esperança como uma carteira vazia.” Em A um revolucionário morto, disse:
Talvez a vitória seja a morte, e a glória
Seja ser só memória disso
A vida é só tê-la, vivê-la e perdê-la.
Hospital São Luís dos Franceses. “Trazei pajens; trazei virgens; trazei, servos e servas, as taças, as salvas e as grinaldas para o festim a que a Morte assiste! Trazei-as e vinde de negro, com a cabeça coroada de mirtos (ramos de murta). Vai o Rei a jantar com a Morte no seu palácio à beira do lago, entre as montanhas, longe da vida, alheio ao mundo.”
Mas sua vida nem sempre imitou a arte; que o “palácio antigo”, com que sonhou, não fica à beira de nenhum lago. Nem está próximo de qualquer montanha. Trata-se de um dos melhores e mais caros hospitais particulares da Lisboa daquele tempo, o São Luís dos Franceses. Fica no Bairro Alto de São Roque, na rua (Simão da) Luz Soriano, 182 ‒ lugar calmo e sombreado, com bancos de ferro ao redor, perto da casa em que mora e a menos de um quilômetro do apartamento em que nasceu.
É conduzido ao quarto 30 (mais tarde, renumerado para 308) ‒ o mesmo em que morrerá, depois, o amigo Almada Negreiros (em 1970). Tão distante do que pressente, em O marinheiro, “um quarto que é sem dúvida num castelo antigo”. Diferente do verão, a luz é pouca naquele quarto acanhado ‒ 3 metros por 4, cama de ferro como as de todos os hospitais, um armário alto, outro pequeno com telefone por cima, sofá para dois lugares, cadeira e mesa de cabeceira modernosa.
Entre cama e janela fica o rendado miúdo de um mosquiteiro, embaçando a paisagem, cenário perfeito para verso que antes escrevera ‒ “Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as coisas como verdadeiramente são”; ou, quase as mesmas palavras do Primeiro Fausto, “há entre mim e o real um véu”.
As paredes, até dois metros, são limpas, pintadas com uma tinta escura; acima disto, e no teto, branco imaculado. Sem um único quadro. Hoje esse quarto tem, pela frente, o elevador que leva ao primeiro andar. A parede é clara e áspera, salpicada por cimento até dois metros de altura; e, a partir daí, lisa como antes.
O teto é de gesso. Um sofá para duas pessoas, bem antigo, fica entre a cama e uma janela que tem grade por fora. Armário, mesa de cabeceira austera e três cadeiras comuns de madeira completam a decoração. Sem grandes mudanças, hoje, em relação à decoração daquele tempo. Em Ritos iniciáticos, diz
Pergunta ‒ De onde vens?
Resposta ‒ Não sei.
P ‒ Aonde vais?
R ‒ Não me disseram (sei).
P ‒ O que sabes?
R ‒ O que esperei (Nada).
Mestre do Átrio ‒ Basta que me digas sim.
O Neófilo ‒ Sim
Mestre do Átrio ‒ A paz seja contigo.
O cenário do festim está pronto. Em vez de pagens, virgens ou servos, é acompanhado apenas por austeras enfermeiras. Sem música ou dança, há lá só aquele silêncio que prenuncia eternidade. Luís Pedro Moitinho de Almeida confirma, citando depoimento de amigos: Não se lhe ouvia um queixume. Só dizia o que era preciso. “Quem sabe se morrerei amanhã?”
Pressente o desastre inevitável e pede um lápis; é que, deitado na cama, tem mesmo que recorrer a ele ‒ dado não lhe ser possível usar o bico da pena com que quase sempre escrevia, naquela época, por só funcionar com essa pena para baixo. E por não haver onde repousar o tinteiro. Esse lápis a família guarda, ainda hoje. Então, põe no peito sua inseparável pasta preta, sobre ela um papel e, em inglês, deixa sua última frase escrita:
I know not what tomorrow will bring (Eu não sei o que o amanhã trará).
Mesmo no inglês corrente do seu tempo, a frase deveria ter sido I don’t know what tomorrow will bring. O uso intencional desse estilo arcaico, com know not, acentua o sentido literário que quis lhe dar.
Já para Pizarro, Ferrari e Cardiello, terá sido “eco evidente de um epigrama de Palladas de Alexandria (Today let me live well; none knows what may be to-morrow), publicado no primeiro volume de Greek Anthology (1916) — um livro que estava nas estantes de Pessoa. Para Jorge Monteiro, em outra versão, escreve a frase evocando “conscientemente as Escrituras (Provérbios, 27:1) que dizem: “Não te felicites pelo dia de amanhã/ Pois não sabes o que hoje vai gerar”.
Segundo sua sobrinha Manuela Nogueira, não foi a primeira vez que disse essas palavras. A confirmar esse depoimento, bom notar que quase reproduz versos incompletos, escritos em 28 de outubro de 1920, depois encontrados na Arca:
I, that know not if I shall live tomorrow,
How but my hope of that live I today.
Não literalmente,
Eu, que não sei se viverei amanhã
Nada tenho senão a esperança de viver hoje.
No Desassossego, pressente “a tortura do destino!” e se pergunta: “Quem sabe se morrerei amanhã?” Essas palavras só agora estavam certas. E todos o sabiam, inclusive ele próprio.
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