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{ ARTIGO }

Privatizar praias, a fake do ano

A possibilidade de qualquer privatização das praias é nenhuma, escreve o jurista e escritor José Paulo Cavalcanti Filho, que pergunta: de onde saiu esse Prêmio Nobel das Fake News?

José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras

Edição Scriptum

Lisboa. O começo desse desvario foi uma troca de farpas, no Instagram, entre a atriz global Luana Piovani e o jogador Neymar, da seleção brasileira. Ela, com modestos 5,4 milhões de seguidores, não tinha o que perder; ele com muito mais, 221 milhões, sim; e os dois, com inveja de Cristiano Ronaldo, o ser humano mais seguido no planeta, com 631 milhões ‒ mais de US$ 3 milhões por postagem e faturamento no aplicativo, ano passado, de US$ 107 milhões.

Nesse descaminho logo se uniram, a Luana, muitos ambientalistas ansiosos por fama que acusam um Projeto de Emenda Constitucional, já aprovado pela Câmara e hoje no Senado, de permitir a “privatização das praias”. E a imprensa do Sul, contritamente, por ser um discurso politicamente correto. Certo ou errado?, não estão nem aí. O problema é que nenhum deles ‒ nem o jogador, nem a atriz, nem os radicais ambientalistas, nem quase nenhum jornalista ‒, nenhum deles teve sequer curiosidade para ler a tal PEC. Vamos ao passado que, como na conhecida marchinha de carnaval, recordar é viver.

Nosso Brasil ainda fazia parte de Portugal quando, por conta das frequentes invasões estrangeiras que aqui sofremos ‒ de Espanha, França e Holanda ‒, cuidou o Reino de proteger as embocaduras dos rios buscando evitar o desembarque de tropas, cavalos e armamentos pesados. Veio daí também a definição de nosso mar territorial, não por acaso a distância do alcance máximo de um tiro de canhão, em 6 milhas marítimas (passando, em 1970, a 200 milhas).

Em 1726, ordem régia de Dom João V, O Magnânimo, estabeleceu que ninguém pudesse alargar suas casas “um só palmo para o mar” sem licença do Reino. E já no Brasil República, com o Decreto 4.105 (de 22.02.1868), afinal ficou explicitada uma das razões básicas dessa reserva de terras, o interesse na “defesa militar”. Porque ali, nessas áreas, poderia ser necessário postar canhões, importante defesa ante as embarcações estrangeiras da época, algo que não seria possível caso houvesse alguma construção no local.

Mas não apenas isso. Também importante e até mais, num País sufocado por sua dívida com a Inglaterra (herança de nossa Independência), foi o “aumento das rendas públicas”. Levando a enorme reação dos súditos. Inclusive no Recife; quando, em 1902, certo dr. Ferrer protestou dizendo que “foi insidiosamente aumentado o patrimônio da nação, em detrimento do público. Bem saberes que hoje procura-se sofisticar a Constituição tirando insidiosamente para a União tudo”.

Com aquele decreto, segundo o § 1o do seu art. 1º, passaram a ser “terrenos de marinha todos os banhados pelas águas do mar ou dos rios navegáveis que vão até a distância de 15 braças craveiros (33 metros) para a parte de terra”. Uma pequena faixa, pois. Que, com o tempo, foi se alterando: aos poucos desaparecendo (em caso de regressão marítima); ou, ao contrário, ficando mais longe da água (quando as areias vão aumentando). Além dos aterros.

Trata-se de uma invenção brasileira, bom lembrar. Para comparar, nos demais países, a área que permanece em domínio público é tão somente aquela necessária “ao exercício dos direitos ordinários de acesso e vista”. Sem um padrão único. Em Portugal e Argentina, por exemplo, apenas 8 metros. No Chile, 20. Em Alemanha, Bélgica, Espanha, França e Inglaterra, 50. Só que, neles, define-se apenas áreas de domínio público, jamais interferindo naquelas usadas por seus habitantes. Nenhum espaço privado sendo alcançado pelo poder público, nesses países.

Terrenos de marinha são aqueles, portanto, que se situam numa faixa de 33 metros a partir da preamar média (preamar é corruptela que vem de pleno mar) de 1831. A média das grandes marés que ocorreram excepcionalmente nesse ano. Tudo como regulado, hoje, pelo Decreto-Lei 9.760/1946. Com problemas graves, como o fato de que terrenos sujeitos a “Ocupação” (quase todos, que só uns poucos são “Aforados”) não podem ser hipotecados. Impedindo financiamentos. E vedada a Usucapião (Código Civil, art. 102), que admite a regularização de imóveis por conta do tempo. Embora, em Pernambuco, o Tribunal de Justiça venha permitindo essa usucapião no regime da ocupação.

Para evitar dúvidas, vale ressaltar, praias são bens públicos (Lei 7.661/1988). E continuam sendo. O que, salvo bem poucas áreas protegidas (vegetação, vida marinha), garante o pleno acesso a elas pelo público. Sem nenhum impedimento possível. Com PEC ou sem PEC.

Agora, o que nos interessa, onde se situam essas terras no Brasil? Basicamente, subindo, só em Belém, Vitória e Santos. Além do Recife, claro, que foi uma cidade feita sobre áreas alagadas. Como no poema de Edmir Domingues, uma Cidade Submersa.

O resto do Brasil nem sabe do que se trata. Apenas (ou sobretudo) as cidades que sofrem com isso. Sobretudo por conta dos enormes custos, para os particulares, no pagamento anual de foros (hoje, de 0,6% sobre o valor do imóvel) ou taxa de ocupação (2% desse valor), mais laudêmio (5%) em caso de transferência dos imóveis. O curioso, e aqui temos a razão pela qual o governo apoia o projeto, é que o peso financeiro do SPU, ao cobrar, é sempre maior que o valor arrecadado.

A PEC 3/2023 (que sucedeu a 39/2011) nasceu dessa necessidade, incorporando 12 projetos apresentados desde 2008. Era (e é) um tema latente, que interessa a todos os brasileiros. O resultado foi um bom texto, tecnicamente. E sabe o amigo leitor quantas palavras dedica, tal PEC, à privatização das praias? Ou que, de alguma forma, poderiam ter alguma repercussão nisso? Nenhuma. Dá para acreditar?

Tudo está muito bem estruturado em só quatro artigos. O que é do Governo Federal, permanece com ele (art. 1º, I); o que é afetado por Estados e Municípios, também com eles, sem custos (art. 1º, II); os em mãos dos particulares, em direito de ocupação e aforamento, áreas que já eram usadas por esses particulares, mediante pagamento (art. 1º, III, IV). Nada mais, na PEC, afora poucas regras operacionais.

Sem contar que, hoje, a compra de imóveis aforados já vem sendo regularmente feita mediante o pagamento de 17% sobre o valor do imóvel. Ocorrendo normalmente, com imóveis aforados. Sem nenhum problema. Sem alardes. Sem protestos. E sem nenhuma acusação, por ecologistas ou imprensa, de que as praias estão sendo privatizadas.

Em resumo, a possibilidade de qualquer privatização das praias é nenhuma. Zero. Então, cabe perguntar, de onde saiu esse Prêmio Nobel das Fake News, de que praias poderiam ser privatizadas?, eis a questão. Ninguém sabe. Talvez só no barraco da atriz global, para prejudicar um desafeto. E de ambientalistas querendo aparecer, sem se preocupar com a veracidade das teses que defendem. E de jornalistas despreparados que sequer leram os projetos que criticam.

O resultado é que a PEC vai, quase certamente, ir mofar nas gavetas; que os senadores não vão querer, em ano eleitoral, se ligar a um projeto que virou impopular na mídia. O Brasil de hoje está ficando raso. Parece até com a máxima de Fernando Pessoa (texto sem título, nem data), “como sempre, saltamos e erramos”. É pena.

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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