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{ ARTIGO }

Proposições da Câmara dos Deputados na área da Segurança Pública

Sociólogo Tulio Kahn analisa os projetos da área apresentados no Legislativo

 

Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático

Edição: Scriptum

 

As bases de dados da Câmara Federal disponíveis on-line contêm cerca de 135 mil proposições legislativas feitas entre os anos de 2020 e 2023, das quais 5,4% (7.379) têm alguma relação com a temática da segurança pública, incluindo ai discussões sobre o sistema prisional, as organizações policiais, condenados e infratores, facções criminosas, drogas, criminalidade e violência em geral. No período considerado, as proposições passaram de 1.338, em 2020, para 2.659, praticamente dobrando de tamanho – e isso considerando que a base atual vai apenas até setembro de 2023, faltando um trimestre para terminar o ano! Mas do que tratam estas “proposições” sobre segurança (na verdade além dos projetos de lei, as bases de dados incluem requerimentos, pareceres, emendas, substitutivos e outros atos legislativos)? Apenas uma análise detalhada, custosa e de longo prazo poderia descrever com exatidão o conteúdo da atividade legislativa sobre o tema.

É possível, todavia dar alguma ideia do teor do material em linhas gerais e monitorar algumas grandes tendências, automatizando algumas etapas da análise. As bases de dados estão disponíveis na forma de planilhas resumidas no site da Câmara dos Deputados, contendo variáveis como datas de andamento, ementa descritiva, relator, status e tipo de tramitação, entre outras informações de interesse. A ementa traz um breve resumo do objeto do projeto e através deste resumo é possível classificar o material em alguns grandes subtemas, acompanhando a evolução no tempo.

Metodologia

Para tanto, construímos um programa em VBA que conta e classifica as proposições, usando como critério de classificação uma série de palavras-chave. A contagem e classificação são feitas se pelo menos uma das palavras-chave é encontrada na ementa. A palavra ou expressão deve ser exatamente como escrita no dicionário de palavras-chave, mas não importa se em letras maiúsculas ou minúsculas. Caso a ementa contenha mais de uma palavra-chave, pertencentes a classes diferentes, ela recebe a classificação da primeira palavra encontrada.

O procedimento classificatório está longe de ser perfeito: palavras relevantes foram certamente omitidas, o significado de alguma delas pode ser ambíguo e se referir a outro contexto (como drogas, colecionadores etc). Sem relação com segurança, a classificação é baseada na primeira aparição da primeira palavra-chave, entre outros problemas de definição e contagem. Pesquisadores, além disso, poderiam ter escolhido outras taxonomias de classificação temática. A Câmara, por exemplo, classifica 8,36% das proposições na categoria de “segurança e defesa”, enquanto nosso procedimento, que exclui “defesa”, encontrou apenas 5,4% delas como pertinentes à esfera da segurança.

O problema é que estamos lidando com uma base de 135 mil registros textuais, tomando apenas quatro anos de atividade legislativa e pode ser valioso encontrar um modo, ainda que tosco, de visualizar os grandes temas presentes nas discussões, mesmo que imprecisamente. O procedimento classificatório proposto, mesmo impreciso, consegue capturar de alguma forma essas macro-tendências e, como veremos, há uma relativa estabilidade dos temas no decorrer dos anos analisados, em termos percentuais.

Após a classificação, separamos os subtemas e criamos nuvens de palavras a partir das palavras-chave mais comuns dentro de cada um deles, selecionando desta vez as palavras-chave mais frequentes. Os dois procedimentos, em conjunto, ajudam a organizar e entender melhor o trabalho do legislativo na esfera da segurança, o que se discute e de que maneira. Vejamos o que se extrai dos dados, a título de exemplificação.

Análise dos dados

Em termos absolutos, todos os temas tiveram crescimento notável entre 2020 e setembro de 2023, o que é um reflexo da relevância crescente do tema para a sociedade e para a Câmara, cuja bancada ligada ao setor de segurança é expressiva (44 deputados federais oriundos das forças de segurança, quase 10% da Câmara). A questão das armas ganhou fôlego durante toda a gestão de Jair Bolsonaro.

 

 

Do ponto de vista relativo, observamos que existem grandes diferenças entre os subtemas. Menções genéricas a “segurança pública”, “violência” e “criminalidade” aparecem em mais da metade das propostas (54,3%), seguidas das referências aos diversos “crimes” (15,7%) e das “organizações policiais” (13%). A questão das “armas” está presente em 4,8% das propostas, e dos “infratores” em 4,5%, porcentagem similar às proposições sobre o sistema prisional (3,9%) ou drogas (3,3%). O tema das facções criminais é o que recebe menor atenção entre os subtemas criados, sendo mencionado em menos de meio por cento dos projetos, não obstante o grande destaque dado nos meios de comunicação.

Vale ressaltar novamente que não estamos falando sempre de novos projetos de lei. Embora a atividade principal do parlamento seja a de propor novas leis ou aperfeiçoar as existentes, a Câmara está envolvida em diversas outras atividades, parte delas relacionadas a debates e estudos que sirvam de subsídios para a elaboração das novas leis: atividades que se traduzem em requerimentos de informação, audiências públicas, pareceres, etc. Há muito contato com as bases dos candidatos, homenageadas com indicações, votos de regozijo, moções, sessões solenes, etc. E também muito embate político, materializado em convocações, requerimentos e outras escaramuças e atos de fiscalização mútua, envolvendo governo e oposição. A base de proposições engloba todas estas atividades. Os projetos de lei representam cerca de 1/3 das atividades e os requerimentos são a segunda atividade mais frequente.

Notam-se algumas peculiaridades interessantes. Chama a atenção, por exemplo, quando a matéria envolve policiais, a grande porcentagem de indicações, votos de regozijo ou louvor, moções e sessões solenes. Embora debates importantes sejam conduzidos, como as leis orgânicas das polícias, boa parte do tempo dos parlamentares é gasto em homenagear as instituições ou operações policiais, sem grandes impactos na estrutura das organizações ou na melhoria da segurança. Com relação às armas, digno de nota são os “decretos legislativos de sustação de atos do executivo” (17,1%), usados para derrubar os decretos do período Bolsonaro sobre a questão. Destaquem-se finalmente os 16% de audiências públicas no subtema “facções”, sinal de que o parlamento tenta se aprofundar no assunto.

Em “segurança pública” de forma genérica, observamos um foco em projetos de violência contra a mulher e violência doméstica ou familiar. Prevenção e proteção surgem como conceitos relevantes;

Em “crimes”, nota-se um foco em crimes do colarinho branco, como improbidade administrativa e corrupção, e tentativas de alteração de penas ou transformação em hediondos de certos crimes. Note-se o destaque para o termo “internet” ao lado dos crimes comuns, refletindo o aumento dos crimes digitais no universo criminal;

Em “facções” vemos uma concentração nas milícias e na questão da expropriação dos imóveis e bens das organizações criminosas;

Em “drogas” o destaque é para o termo “usuários”, que parece percebido, felizmente, não como um criminoso, mas antes como um doente que precisa de tratamento médico, como denotam a relevância dos termos prevenção, saúde, atendimento, álcool, CAPS e psicossocial;

Em “infratores”, o foco se deteve claramente no Estatuto da Criança e do Adolescente, mas curiosamente o interesse parece residir na proteção de direitos ao invés de apenas na criminalização ou no aumento de penas, como de costume. Daí a preponderância de palavras tais como direitos, rede, garantir, proteção, assistência, ensino etc.

Em “polícias”, como já observado, o foco das atividades se deteve nas moções de apoio, nas louvas, nos regozijos pelos excelentes serviços prestados, nos aplausos e um pouco menos nos pedidos de informações sobre operações específicas, quando cometidas pelo governo “errado”;

Com relação ao sistema prisional, os parlamentares se concentram nas tentativas de alterar a LEP e aparentemente nas condições dos estabelecimentos prisionais, especialmente de saúde. Discutiram-se provavelmente a questão das prisões temporárias e preventivas e alguma coisa sobre fundos, ensino e inclusão de egressos;

Finalmente, no subtema “armas”, predominam as discussões sobre as portarias e decretos do governo Bolsonaro, o Estatuto do Desarmamento e outras legislações que alteraram as regras relativas a registros, porte, aquisição, posse e comercialização de armas, para os CACs.

As interpretações são tentativas e o tipo de procedimento proposto não permite entrar em detalhes das proposições e tampouco é esta a finalidade. Inobstante, parece ter alguma utilidade heurística: ele permite ver que o interesse pelo tema é crescente, a distribuição relativa entre os diversos subtemas, que facções e crime organizado são relativamente pouco presentes nos debates, que a atividade legislativa ainda se concentra na alteração da legislação criminal, o surgimento de novos temas como crimes na internet ou milícias. Os resultados parecem fazer sentido para quem acompanha de longe o tema da segurança no parlamento e coincidem com outras metodologias de análise da atuação congressual (veja).

O procedimento precisa ser aperfeiçoado, particularmente a questão da escolha apriorística dos temas e das palavras-chave e seus sentidos, problemas típicos de toda análise qualitativa de discurso (QDA). Uma vez sedimentado, um levantamento deste tipo tem custo zero e pode ser realizado em minutos. Não é ideal. Como todo levantamento do tipo “bigdata”, imprecisão é o custo a pagar – desde que o custo do erro seja tolerável. A alternativa é ler e resumir 135 mil proposições para tentar entender sobre o que elas falam. Quem quiser que se habilite.

 

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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