Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
O World Value Survey, maior projeto de pesquisa acadêmica em andamento no mundo, é realizado aproximadamente a cada cinco anos desde os anos 1980. Está na sua oitava rodada (2024, dados ainda não disponíveis) e já entrevistou milhares de pessoas em mais de 120 países, incluindo o Brasil, sobre crenças, normas e valores culturais, políticos, sociais, econômicos e religiosos, entre as mais de 300 questões contidas no questionário.
É possível comparar a evolução de alguns valores no tempo por 39 anos. Para dar uma ideia da relevância do projeto, mais de 30 mil artigos foram escritos com base no WVS e a base de dados, cujo download é livre, já foi baixada mais de 800 mil vezes. A sétima rodada do WVS contém 93.728 entrevistas realizadas em 66 países entre 2017 e 2022, com mais de 600 variáveis. É a fonte utilizada neste artigo.
Nosso interesse aqui é avaliar o apoio ao terrorismo e à violência política, infelizmente justificado por inúmeras pessoas em todo o mundo. Existem pelo menos três perguntas no questionário abordando a questão por diferentes ângulos, com elevado grau de consistência entre elas: 32,6% dos entrevistados acham justificável o uso de violência contra outras pessoas; 34,5% acham justificável a violência política; e 29,7% aceitam o uso do terrorismo como um meio para fins políticos, ideológicos ou religiosos. As variáveis foram construídas através de uma escala de 1 a 10, mas para simplificação da análise dicotomizamos as variáveis em duas categorias: nunca justificável x justificável em alguma medida.
Utilizando “árvores de decisão”, construímos um modelo contendo 78 variáveis independentes, o que produziu uma árvore com profundidade de cinco ramos e 13 nós pelo método QUEST. A variável dependente é aceitar ou não o terrorismo como meio para fins políticos, ideológicos ou religiosos. O modelo final previu adequadamente a classificação em 86,8% dos casos. O acerto é menor para identificar apoiadores (59,2), mas acerta muito bem no que diz respeito aos não apoiadores (96%).
As variáveis mais relevantes – aquelas que melhor dividem em grupos homogêneos os que justificam ou não justificam o terrorismo como meio, foram: “é justificável um homem bater na sua esposa”; “é justificável o suicídio”; “é válido, numa democracia, que as autoridades religiosas interpretem as leis”, “é justificável que parentes batam nos filhos”, e “pertencimento a alguma organização religiosa”.
Outras variáveis se revelaram úteis para a distinção entre os grupos, mas para tornar a árvore mais simples, ela foi podada de modo a utilizar apenas as mais relevantes[1] usando como critérios uma profundidade máxima de cinco, seleção Alphasplit de 0.05, mínimo de 200 casos no nó “pai” e 100 casos no nó “filho”.
A lista sugere a relevância de valores “patriarcais” (bater na esposa e filhos), conservadorismo social (divórcio, aborto, igualdade de gênero) e religiosos (interferência da religião na política, participação em organização religiosa, frequência a serviços religiosos, religiosidade das crianças etc.)
Na raiz da árvore temos o apoio de 25% e rejeição ao terrorismo (75%). No primeiro ramo vemos a subclassificação por “justificável bater na esposa”. O apoio ao terrorismo sobe para 67% entre os que acham justificável bater na esposa e despenca para 10% entre os que acham que “nunca é justificável”. A árvore segue descendo pelo ramo esquerdo e eleva o apoio ao terrorismo para 80,2% entre os que acham que o suicídio é de algum modo justificável.
A árvore segue se subdividindo pela esquerda e o apoio ao terrorismo chega a (84%) entre os que avaliam que a interpretação religiosa das leis é uma característica compatível com a democracia. A partir deste ramo, agora pela direita, chega ao máximo de 86% de apoio ao terror entre os que também acham “justificável os pais baterem nos filhos”. Finalmente, pela direita, há um último ramo que sugere que o apoio ao terrorismo cresce entre os que são membros de alguma organização religiosa.
A questão religiosa é mais complexa do que aparenta e o terrorismo tem também justificativas não religiosas. Justificar o suicídio não é exatamente um valor religioso e é um dos melhores “marcadores” de apoio. O apoio ao terrorismo sobe, por exemplo, entre os que concordam que a própria religião é a única aceitável, mas aumenta também entre as pessoas que se dizem ateístas ou não religiosas.
Por outro lado, o apoio cai entre aqueles que comparecem mais frequentemente aos rituais religiosos ou rezam mais frequentemente. Ser mais religioso não implica necessariamente em mais apoio ao terrorismo, mas antes o contrário. O apoio ao terrorismo parece antes ligado a maior relativismo moral e inconformismo com algumas regras: associações bivariadas sugerem que o apoio ao terrorismo é maior também entre os que justificam receber propina, sexo antes do casamento e com a escala Welzel de relativismo.
Partindo da raiz pelo sentido contrário, o apoio ao terrorismo cai para 10% entre os que acham que “nunca é justificável o homem bater na esposa”, e ai já atingimos a menor porcentagem nesta categoria.
Por que estas associações são importantes? Ninguém pergunta diretamente a um radical, imigrante ou exilado em potencial etc. se ele apoia o terrorismo, pois dificilmente responderá afirmativamente numa entrevista oficial. Mas se soubermos que o indivíduo justifica bater na mulher e nos filhos e que acha o suicídio uma opção justificável, temos uma boa noção de suas opiniões sobre o terrorismo, ainda que meramente probabilística. A ideia é que podemos capturar comportamentos indesejados através de questões indiretas. As associações indiretas podem ser utilizadas para capturar propensão à corrupção, à pedofilia, regimes autoritários e outras características difíceis de capturar diretamente.
Do ponto de vista das políticas públicas, talvez alterar traços culturais com relação a certos temas – como igualdade entre os gêneros – contribua indiretamente para diminuir o respaldo ao terrorismo, promovendo outros valores.
Haerpfer, C., Inglehart, R., Moreno, A., Welzel, C., Kizilova, K., Diez-Medrano, J., Lagos, M., Norris, P., Ponarin, E. & Puranen B. (2022): World Values Survey Wave 7 (2017-2022) Cross-National Data-Set. Version: 4.0.0. World Values Survey Association. DOI: doi.org/10.14281/18241.18
[1] As variáveis independents incluidas no modelo, por ordem de entrada, foram: Justifiable: For a man to beat his wife, Justifiable: Parents beating children, Justifiable: Suicide, Justifiable: Divorce, Justifiable: Abortion, Democracy: Women have the same rights as men, Democracy: Religious authorities interpret the laws, Ethnic group, Religious denomination – detailed list, Membership: church or religious organization, Active/Inactive membership: Church or religious organization, How often do you attend religious services, Important child qualities: religious faith, Religious denominations – major groups, How often do you pray (Constructed)
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