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{ ARTIGO }

Segurança pública como atividade de rotina

O dia a dia do policial fornece uma perspectiva sobre como encarar os indicadores, escreve Tulio Kahn

 

Tulio Kahn, cientista político e colaborador do Espaço Democrático

Edição Scriptum

 

Nos anos 1980, Cohen e Felson desenvolveram a teoria do crime como atividade de rotina, estabelecendo, resumidamente, que para que um crime ocorra é preciso que um autor motivado e uma vítima em potencial se encontrem no mesmo espaço e tempo, na ausência de guardiões. Os autores não podiam antecipar que décadas depois, na era dos crimes digitais, criminosos e vítimas não precisariam mais se encontrar fisicamente e que boa parte dos crimes ocorreriam no cyberespaço, de foram assincrônica (Felson, Marcus, and Lawrence E. Cohen. Human ecology and crime: A routine activity approach. Human Ecology 8 (1980): 389-406).

A novidade da perspectiva estava em olhar para as circunstâncias do crime em vez de tentar explicá-los apenas com base nas motivações individuais dos criminosos. De todo modo, a teoria ainda é válida para o se refere aos crimes analógicos e a ideia da “rotina” é de que criminosos percebem as oportunidades criminais quando estão, por exemplo, voltando para as suas casas, vindo de lugares conhecidos, e se deparam com situações propícias e vítimas em potencial, que igualmente transitam pelas ruas para suas atividades diárias, repetindo cotidianamente os mesmos itinerários, horários e comportamentos.

Gostaria de observar que, além de criminosos e vítimas, os atores vinculados à segurança pública também exercem “atividades de rotina”. Esta repetição cotidiana de atividades de segurança é o resultado de diversos fatores: crimes são fenômenos bastante estáveis tanto no tempo quanto no espaço. Assim, hot spots – pequenas áreas que concentram elevada densidade de crimes – são bastante resilientes, apesar dos esforços de vigilância focada. Criminosos tampouco mudam de carreira, parceiros ou de modus operandi de uma hora para outra. Existe adaptação, mas não é tão fácil migrar de uma atividade criminal, que requer certa especialização, para outra. Muitas pessoas, comércios e residências são vitimadas repetidas vezes, pois estão localizados ou residem e trabalham em locais particularmente atrativos e mantêm os mesmos comportamentos de risco, mesmo tendo sido repetidas vezes o alvo de crimes. As estatísticas temporais mostram que muitos crimes são inerciais, ou seja, que o melhor preditor da quantidade de crimes num determinado período é simplesmente a quantidade de crimes no período anterior.

Crimes seguem padrões estáveis e por isso foi possível que surgisse algo como a criminologia como área de conhecimento científico: não sabemos os nomes dos autores nem dos mortos, mas sabemos que existe uma grande probabilidade de que alguns homicídios ocorrerão na madrugada do próximo final de semana, na zona Sul de São Paulo, com uso de arma de fogo. As vítimas serão, com elevada probabilidade, homens, jovens, não brancos, de baixa escolaridade e renda e apresentarão resíduos de álcool no sangue. Vítimas e algozes morarão a poucos quilômetros de distância e os assassinatos acontecerão na rua e ou perto da residência das vítimas. Essa descrição geral se aplica a praticamente qualquer grande cidade do Brasil e provavelmente do mundo.

O sistema de justiça criminal – polícias, justiça, prisões etc. – é composto, por sua vez, por grandes organizações burocráticas e particularmente conservadores no que tange às suas práticas e valores. Isto explica, em parte, porque as polícias, quase sempre e em todo lugar, executam as mesmas atividades – resposta aos chamados ao 190, operação saturação, rondas, operações de fiscalização de trânsito, policiamento escolar, campanas, interceptações telemáticas etc. – do mesmo modo, nos mesmos dias e locais, visando o mesmo perfil de suspeitos etc. Embora exista uma ampla gama de operações, táticas e estratégias de policiamento, de modo geral as polícias tendem a repetir em gênero número e grau suas atividades cotidianas. É o que se aprende nas academias. O que sempre se fez porque sempre se fez assim. É o que as outras polícias também fazem etc. Essa “rotina”, é claro, existe em todo tipo de profissão e é precisamente o que faz com que certo grupo de atividades repetidas seja classificado como uma “profissão”. Trata-se de uma “cultura” encontrada igualmente em todas as polícias e, como tal, de modificação lenta e difícil.

O meu ponto aqui é que esta segurança como atividade de rotina fornece uma perspectiva sobre como encarar os indicadores de atividade policial (desempenho, esforço, há diversos sinônimos), tais como “apreensão de armas”, “prisões efetuadas”, “apreensões de drogas”, “veículos recuperados” etc – e sua utilidade para a gestão pública e as pesquisas empíricas. O argumento é que, de modo geral, mudanças nestes indicadores refletem muito mais mudanças no mercado criminal do que mudanças nas operações policiais ou políticas de segurança pública, que tendem a ser rotineiras em qualidade e intensidade.

Detalhando o argumento, embora possam variar segundo a ênfase de uma ou outra gestão na busca e apreensão de armas ilegais, indicadores como “armas apreendidas” refletem mais a quantidade de armas em circulação do que mudanças nas rotinas de busca e apreensão de armas. Volume de “prisões efetuadas” varia antes com o volume de certos crimes que geram muitos flagrantes, como o roubo, do que com variações de intensidade nos cumprimentos de mandados ou flagrantes. Quantidades de “drogas apreendidas” ou “ocorrências de tráfico”, por sua vez, variam principalmente em função do mercado de drogas e “quantidade de veículos recuperados”.

De praxe, faz sentido pensar que estamos diante de alterações nas intensidades dos esforços policiais apenas quando vemos alguma variação muito diferente da média ou temos evidências claras e documentadas de uma nova política inaugurada em determinado local e período pelo gestor: o estabelecimento de uma recompensa por arma apreendida, seguradoras dando prêmios para veículos recuperados, bônus salarial para o cumprimento de metas de prisões etc. Na ausência destes incentivos, a tendência é inercial.

Aceitas estas premissas, uma primeira implicação é a impossibilidade de premiar ou castigar de forma justa os gestores em função do seu “desempenho”, utilizando estes indicadores. Estar apreendendo mais armas, drogas e veículos pode ser antes o fruto da piora da criminalidade, e não o contrário. Se o objetivo é premiar desempenho, é preciso desenvolver outro tipo de indicadores ponderados, como a porcentagem de veículos encontrados sobre o total de veículos subtraídos, porcentagem de armas apreendidas por revistas realizadas ou de drogas apreendidas por denúncia.

Outra implicação está relacionada ao status teórico destes indicadores de atividade para fins de estudos. Economistas e estatísticos resistem em construir modelos utilizando estes indicadores de atividade policial, pois seriam inevitavelmente eivados de vieses, uma vez que podem espelhar tanto alterações na intensidade de operações quanto dos fenômenos criminais. Meu argumento é que, em princípio, poderiam ser utilizados como medida válida dos fenômenos criminais subjacentes: ou seja, armas apreendidas mensuram, em grande medida, armas em circulação; drogas apreendidas medem principalmente drogas em circulação; veículos recuperados mensuram veículos roubados; e assim por diante.

Estes indicadores continuam sendo problemáticos por serem endógenos: mais armas levam a mais homicídios e mais homicídios podem levar a mais armas; mais crimes geram mais prisões e, em longo prazo, mais prisões podem implicar em aumento na criminalidade etc. A interpretação deve sempre ser cuidadosa e existem técnicas para contornar algumas destas dificuldades. Mas endogeneidade é um problema metodológico e validade e confiabilidade da medida são outros. Aceita a premissa da “segurança como atividade de rotina”, podemos considerar que indicadores de atividade policial medem mais os fenômenos criminais subjacentes do que o esforço policial.

Independentemente de aceitar ou não a premissa, como testar se os indicadores de atividade policial estão medindo desempenho e esforço policial ou variações nos fenômenos criminais correspondentes? Existem diversas maneiras e a mais elementar é correlacionar estes indicadores com medidas válidas do mesmo fenômeno: correlacionar armas apreendidas com percentual de suicídios cometidos com armas de fogo (proxi reconhecida para armas em circulação), correlacionar quantidade de veículos recuperados com quantidade de veículos roubados e furtados, correlacionar prisões efetuadas com quantidade de roubos e assim por diante. No caso de apreensão de drogas, verificar, por exemplo, numa análise transversal, se o volume de apreensões guarda relação com as taxas estaduais de prevalência de uso de drogas. E o que chamamos de teste de validade externa.

Alguns momentos são particularmente propícios para colocar à prova empiricamente a hipótese de que estes indicadores medem pouco e mal o desempenho policial. Como no caso dos indicadores criminais, quando indicadores de atividade policial variam de forma generalizada (em vários Estados) e mais ou menos simultaneamente, é porque estamos diante de causas comuns. Num estado federativo, supõe-se que esforços das polícias estaduais se comportariam de forma aleatória, no espaço e no tempo. Onde existe “ordem” e padrões, por outro lado, supõe- se a existência de forças subterrâneas em atuação.

O Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública vem a alguns anos constatando, por exemplo, a queda das ocorrências de tráfico de drogas no País. Do ano passado para cá, 20 dos 27 Estados tiveram tendência de queda nas ocorrências de tráfico. Também em queda com relação ao pico de 2016 estão as “armas apreendidas” pelas polícias (18 dos 27 Estados do ano passado para cá) e as ocorrências de posse e porte ilegais caem em 19 das 27 unidades federativas desde 2018. Finalmente, a quantidade de adolescentes internados caiu para menos da metade desde 2016 e em 19 dos 27 Estados, do ano passado para cá.

O que significam estas quedas generalizadas dos indicadores de “atividade policial”, mais ou menos simultâneas? É difícil argumentar que a maioria dos Estados passou a esmorecer no combate ao tráfico, de modo sincronizado. Ou que começaram ao mesmo tempo e de comum acordo a negligenciar as “buscas e apreensões de armas” ou fechar os olhos para os crimes cometidos por crianças e adolescentes. Uma explicação plausível seria uma mudança nacional de legislação ou de política sobre estes temas, que afetasse uniforme e simultaneamente muitos Estados.

Com relação às armas de fogo, trata-se de um enigma não resolvido: a política nacional dos últimos anos foi precisamente no sentido contrário, de liberação das armas via decretos legislativos. Temos mais portes, mas menos apreensões. Se as apreensões policiais estão diminuindo ou estáveis, é provável que estas armas estejam em casa e não nas ruas, ainda. O crescimento dos casos de violência contra a mulher corrobora esta interpretação. A legislação permitiu a posse, mas o porte não é tão simples, apesar da flexibilização. Essa conjectura é consistente com a tendência de queda dos homicídios observada a partir de 2017.

Com relação às crianças e adolescentes, houve uma orientação do CNJ para evitar a internação em regime fechado durante a pandemia, mas a queda é anterior e se manteve, passada a epidemia. Essa orientação teria sido suficiente para frear a atuação policial com relação aos crimes cometidos pelos “menores”? E como explicar a diminuição das internações juvenis ao mesmo tempo em que crescem as prisões de adultos?

E o que dizer da queda das ocorrências de tráfico e apreensão de drogas, já longevas no caso de Estados como Rio (2015) e São Paulo (2017)? Há indícios de que as polícias estejam nacionalmente sendo menos rigorosas com esta modalidade de crime do que no passado? Por qual motivo teriam as polícias se tornado mais “brandas” com os traficantes?

Estes são alguns enigmas trazidos pelos dados do Anuário e ainda não esclarecidos adequadamente. Nos três casos – apreensão de armas, tráfico/apreensão de drogas e internação de crianças e adolescentes, está lidando com indicadores de “atividade policial”. Mas o que eles estão medindo de fato? É preciso entender conceitualmente o que são e o que medem estes indicadores. Esse entendimento tem implicação tanto para a gestão da segurança como para a compreensão dos fenômenos criminais e suas tendências.

 

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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