José Paulo Cavalcanti Filho, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e colaborador do Espaço Democrático
Edição: Scriptum
Respondendo a pergunta sobre como encarava os que lhe criticavam, Dario Fo, Nobel de 1997, respondeu (Il Fabulazzo) com a lembrança de um velho provérbio chinês que recomenda sentar à margem do rio para compreender que “as águas passam mas o rio e as margens continuam os mesmos”. Comparo nosso antigo Ginásio (hoje Colégio) de Aplicação a esse rio, onde somos nós as águas que passaram.
Penso em rostos e nomes nas águas desse rio, lamentando conviver hoje com tão poucos. Alguns sabemos onde estão, que foram dar em mares distantes – e esses, quem sabe?, ainda poderemos reunir algum dia. Outros o rio levou definitivamente; e só não desapareceram, por completo, porque sobrevivem como exilados em nossas memórias.
No Ginásio de Aplicação daquele tempo, aprendemos que o objetivo da escola não é propriamente ensinar – ou não é apenas ensinar, como queiram. Seria mais. Saber que seu papel fundamental é fazer com que jovens compreendam o mundo que habitam, e estejam permanentemente dispostos a interferir nele. É mais solidariedade que exclusão. E do Ginásio haveria tanto mais a dizer; os professores, o casarão da Nunes Machado, o guaraná Fretelli Vita em frente, o padre Sales na igreja da Soledade à esquerda. E lamentar que, indo para longe (Cidade Universitária), tudo isso tenha se convertido, sem remédio, num passado que passou.
Fui de sua segunda turma. História curiosa. Estudava numa escola experimental, com só quatro alunos, o Instituto Capibaribe, imaginado por Paulo Freire e dona Rachel Correia de Crasto. Tão nova que, fim do ano, sequer fazia provas. No quarto ano primário (eram cinco naquele tempo, hoje não sei), com só nove anos, dona Rachel chamou minha mãe: “Seu filho está perdendo tempo aqui, mande ele para o Ginásio de Aplicação”.
Era o Exame de Admissão mais severo daquele tempo. Razão pela qual feito um mês antes do das outras escolas, para que os não aprovados pudessem ir para elas. Com turmas de 30 alunos. Apesar dos mais de mil inscritos naquele ano, só 18 foram aprovados. E tão a sério levavam a ideia de ser uma escola (experimental) de excelência que sequer completaram as 30 vagas disponíveis com os 12 alunos que vinham em sequência.
Isso lembro por ter lido, no Jornal do Commercio (de Recife), declaração do diretor do CAP (assim se chama, hoje) segundo quem não haverá mais exames para “a entrada de novos alunos”. Que passa a se dar não com provas, mas por sorteio. Pois, segundo ele, “o sorteio democratiza o acesso ao colégio”.
Fosse pouco, terça passada o amigo querido Flávio Brayner, também no Jornal do Commercio, apoiou a tese. Segundo ele, tudo se resume ao confronto entre “classes abastadas” e “classes populares”. Num cenário de oposição entre “individualismo liberal da modernidade burguesa” e as “condições sociais em que vivemos”. Em belas palavras, “o sorteio não é o abandono dos deuses: é nossa crença de que somos todos iguais”. Para simplificar, e num discurso ideologizado, trata-se de reação à crença de que só a classe média alta pode pagar cursinhos. O que é muito discutível. Fico à vontade para falar porque, dinheiro sobrando, minha família nunca teve. E não fiz cursinho nenhum. Prova de que não é sempre necessário pagar cursinhos caros para ser admitido.
Segundo Flávio, reclamar do sorteio seria “chororô”. Só um clichê. Sem admitir que apenas consideramos mais justo, mais adequado e melhor, para a instituição, um outro critério. De admissão não por sorte, dados (alea) na mesa, mas pelo mérito. Com provas. Um pensamento, nele, de resto até coerente. Que, faz pouco, pregou o fechamento compulsório das escolas privadas, para que todos os alunos fossem obrigados a frequentar escolas públicas. Pouco importando, nessa tese, que nenhum país de Primeiro Mundo use um sistema assim.
Lembro George Orwell (1984), “Quem controla o futuro controla o presente e quem controla o passado controla o futuro”. E é com esse futuro que me preocupo. Como se trata de uma instituição do Governo Federal, creio que se pense estender essa relação, entre sorteio e democracia, para além das fronteiras do colégio. Até por não fazer sentido usar o tal sorteio apenas para substituir um Exame de Admissão. Vão, provavelmente, além. Usar ele em tudo. Porque recusar o mérito na admissão, sob o argumento (paupérrimo) de que o sorteio seria mais democrático, no fundo é só o que fica desse discurso populista. Algo que, perdão, não faz nenhum sentido.
Se assim for, então, corremos o risco de ver os argumentos apresentados, em defesa do Colégio de Aplicação, valendo para todos os outros critérios de admissão operados pelo Governo Federal. Vestibular?, pra quê?, melhor e mais barato fazer logo sorteio. Concursos públicos?, não, sorteio é mais simples. Médicos, que vão tratar de nossos filhos?, sorteio. Pilotos de avião?, sorteio. Ministro do Supremo?, sorteio. Ninguém mais vai poder reclamar de não ter “recursos proporcionados pela condição de classe”. Mesmo não havendo isso em nenhum lugar do planeta. Uma revolução, segundo eles. Enquanto penso que tudo se resume a demagogia e preconceito, para Voltaire (Maomé) “o rei do vulgo”.
Choro o fim do Ginásio de Aplicação que ainda sobrevivia nos pobres corações dos que foram seus alunos. Que o novo Colégio de Aplicação, ao trocar o mérito pelo acaso, vai deixando de ser uma tentativa de ensino com excelência para virar só loteria, uma casa de sorteios.
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