Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
A morte dos médicos paulistas num quiosque da praia, em setembro, e os 35 ônibus incendiados nesta semana, em represália à morte de um miliciano, reascendem a preocupação dos brasileiros sobre a segurança no Rio de Janeiro e no País.
O Rio, como se sabe, tem características físicas, sociais, culturais e organizacionais que o tornam sui generis no cenário brasileiro, quando o tema é segurança: a geografia dos morros, a proximidade física entre ricos e pobres, a existência de milícias, as diversas facções criminosas, o domínio territorial sobre as comunidades, a glamourização da “vida bandida” e a ética da esperteza, a inexistência de uma secretaria estadual de segurança, a corrupção no sistema de justiça criminal, a política de guerra ao tráfico, as balas perdidas, a operação GLO das forças armadas, a elevada taxa de letalidade policial, a leniência da população com relação às pequenas contravenções, a crise fiscal do Estado, decorrente da queda da atividade econômica e da arrecadação, as baixas taxas de esclarecimento de crimes, a alternância entre lideranças corruptas no executivo e no legislativo etc. Todos estes aspectos já foram bastante explorados nos estudos criminológicos, matérias jornalísticas e na ficção, que parece fascinada com o caso do Rio, purgatório da beleza e do caos.
Em conjunto, estes traços explicam em parte as especificidades criminais do Rio, enquanto outra parte tem relação com o marco legal nacional e com as macro-tendências demográficas, sociais e econômicas que afetam todos os Estados: falamos aqui das regras de flexibilização ou restrição de armas de fogo, da organização das polícias, do Código Penal e de Processo Penal, do envelhecimento da população, das taxas de desemprego e desigualdade e outras variáveis. O perfil criminal de cada local é sempre resultante destas especificidades e macro-tendências e estruturas regionais e nacional.
Embora estes casos escabrosos mereçam grande atenção midiática – e merecem pela gravidade dos eventos – uma olhada nas estatísticas criminais oficiais do Rio de Janeiro permitem fazer uma avaliação mais ponderada das tendências criminais no Estado. O Instituto de Segurança Pública divulga dados desde os anos 1990 sobre diversos indicadores criminais.
Com relação aos crimes contra “a pessoa” (tecnicamente latrocínio é um crime contra o patrimônio), as tendências históricas são mistas. Homicídios dolosos e latrocínios estão em queda quando comparamos com os períodos anteriores, chamando a atenção a redução de 42,8% dos homicídios quando comparamos com o período 1993-1997. Em contraste, as tentativas de homicídio cresceram expressivamente, sugerindo que os atentados contra a vida crescem, mas estão se tornando menos letais, talvez como resultado da substituição dos meios. As lesões corporais dolosas, por sua vez, tiveram seu auge no quinquênio 2008-2012 e estão atualmente nos mesmos patamares do quinquênio 1998-2002.
As tendências dos crimes patrimoniais são igualmente mistas, dependendo da modalidade criminal. Quase todas as modalidades de roubo apresentaram crescimento e estão no seu ápice, exceções feitas à relativa estabilidade do roubo a comércio e da queda do roubo a banco (-94,5%), que é tendência nacional e tem relação principalmente com a adoção de estratégias e mecanismos de proteção adotadas pelo setor privado. O total de furtos vem aumentando, mas observamos também quedas em certas modalidades, como o furto de veículos, que cai 23,3% quando comparamos o quinquênio atual com o primeiro (1993-1997).
A primeira observação, portanto, é que o crescimento da criminalidade não é generalizado no Rio, e no caso dos crimes mais graves, como homicídios e latrocínios, a tendência histórica é de melhora.
Muitos dos crimes em queda no Rio – homicídios, latrocínios, roubo a banco, furto de veículo etc. – são tendências nacionais, pelo menos quando observamos os últimos dez anos, para os quais existem dados comparáveis. Apesar de alguns esforços do governo carioca na segurança, como as UPPs, a criação do ISP e das AISPS, a criação do Sistema Integrado de Metas (SIM), os investimentos feitos durante os jogos Pan-Americanos, em 2007, as Olimpíadas de 2016 e Copa do Mundo de 2014, do crescimento relativo das despesas com segurança, da Operação Segurança Presente etc. – são poucos os estudos robustos que conseguem vincular estas iniciativas a algum impacto na criminalidade. Diga-se de passagem, o mesmo é verdade para todos os Estados – algumas das poucas exceções podem ser encontradas na revisão de Kopittke, (Manual de Segurança Pública Baseada em Evidências, 2023).
Se os problemas do Rio de Janeiro são a resultante de fatores locais e nacionais, a solução para a segurança no Estado deve vir também destas duas dimensões. Não vou arriscar um cardápio de soluções, já que o Rio de Janeiro deve ter a maior proporção de criminólogos por metro quadrado do Brasil e quiçá do mundo. Mas apenas lembrando o óbvio, existem os fatores que não podem ser modificados pelas políticas públicas ou apenas em longo prazo – como a geografia, cultura ou a demografia. E outros são manipuláveis em curtíssimo prazo, como a recriação da Secretaria Estadual de Segurança, origem dos poucos projetos inovadores da área no Rio. Se a integração entre as polícias no Brasil já é ruim, a inexistência de uma secretaria hierarquicamente acima das polícias estaduais, forçando esta integração, acirra a autonomização e o corporativismo em cada instituição policial.
Mas é preciso também alterar as regras do jogo que formatam a estrutura de segurança pública de todo o País, que padecem, ainda que talvez em menor grau dependendo do Estado, dos mesmos problemas que a polícia carioca: excesso de violência, corrupção e ineficiência. A questão da segurança pública não vai avançar até se forme uma consciência nacional sobre a necessidade de reformar as polícias, substituindo o ineficiente modelo vigente de 4/4 de polícia (PM oficiais X PM praças X PC Delegados X PC outras carreiras), por um modelo de polícia unificada.
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