Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição: Scriptum
Os boletins de ocorrência elaborados pelas polícias civis são as principais fontes de estatísticas para contabilizar e analisar crimes no Brasil. Todavia, foram originalmente pensados como peças processuais – qualificando os envolvidos e anotando dados que possam servir para a classificação da natureza jurídica do evento e culpabilização dos suspeitos. Trata-se, porém, de uma fonte bastante precária para estudar a criminalidade e suas dinâmicas.
Isso acontece não apenas porque de início existem poucas evidências testemunhais e periciais sobre o fato, mas também porque o “instrumento” não contém variáveis de interesse criminológico e os policiais, atarefados, percebem o B.O. como uma peça burocrática do inquérito, deixando muitas vezes de explorar detalhes relevantes para a compreensão do fenômeno criminal.
Tome-se, por exemplo, o atendimento a ocorrências envolvendo mortes violentas, em tese o tipo de ocorrência mais relevante para a sociedade e melhor investigado. Na ausência de testemunhos ou evidências periciais, o primeiro passo é tentar separar as mortes naturais das mortes violentas. Sem laudos periciais, é difícil identificar um envenenamento intencional ou distinguir um aborto espontâneo de um provocado.
Se a morte é violenta, é preciso distinguir as auto-lesões das lesões acidentais e das intencionais. A dificuldade reside em que uma morte por traumatismo crânio-encefálico pode ser tanto o resultado de uma queda quanto de um acidente de trânsito ou de uma pancada intencional com um agente contundente, entre outras situações. Se intencionais, é necessário avaliar ainda se se trata de suicídio, latrocínio, homicídio doloso, confronto com a polícia e outras classificações jurídicas. Frequentemente, tudo que o investigador tem à sua disposição é um corpo estendido no chão e nada mais.
A perícia pode acrescentar posteriormente elementos a este quebra-cabeças. Como dizem os peritos, “o corpo fala”. Mas o que ele realmente pode dizer sobre a dinâmica do crime ou sua motivação e contexto?
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disponibiliza mensalmente os laudos do IML desde 2013, contendo variáveis como data, local, idade da vítima e causa mortis. Neste artigo, utilizamos 12.936 laudos produzidos pelo IML entre janeiro e junho de 2022 no Estado de São Paulo. Note-se que, em tese, o IML só examina os casos de morte por causa externa ou não natural, como homicídios, suicídios, acidentes ou mortes suspeitas. Os casos de morte natural são enviados ao Serviço de Verificação de óbitos, vinculado à Secretaria da Saúde.
Utilizando o software QDA Miner, fizemos uma análise do campo textual causa mortis para entender quais tipos de informações estão presentes (e ausentes) nos laudos que possam ajudar a explicar a dinâmica e contexto da morte. O QDA extrai automaticamente o cluster de expressões frequentes por proximidade e permite ao pesquisador criar suas próprias categorias de análise.
Nas bases disponibilizadas, infelizmente, há somente um resumo lacônico da causa mortis, impossibilitando uma análise pormenorizada. O gênero da vítima tampouco é disponibilizado, variável fortemente associada a diferentes dinâmicas fatais. Tendo estas limitações em mente, é, todavia possível extrair informações de interesse.
Meios utilizados
Uma busca por palavras-chave relacionada aos “meios” utilizados releva que estes são raramente descritos nos laudos. Para darmos uma dimensão da escassez descritiva com relação aos meios, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo registrou 1.708 vítimas de homicídio culposo por acidente de trânsito no primeiro semestre de 2022. Contudo, há apenas 75 menções a trânsito nos laudos do IML (0,6% dos casos). Do mesmo modo, registrou 1.592 vítimas de homicídio doloso, latrocínio e lesão seguida de morte no primeiro semestre de 2022. Embora armas de fogo e armas brancas sejam os principais agentes utilizados para o cometimento dos homicídios, há apenas 109 menções a armas de fogo nos laudos do IML (0,8% dos casos), e 92 menções a agentes perfurantes, contundentes ou penetrantes. Os laudos são, portanto, fonte bastante precária se quisermos identificar os meios utilizados nas mortes. Os meios tampouco podem responder se a morte foi auto-provocada, acidental ou intencional. Mas trata-se de informação crucial para elaborar políticas preventivas, como a limitação do acesso aos venenos agrícolas, frequentemente utilizados nos suicídios. Ou as armas de fogo, utilizadas nos homicídios.
Outro dado bastante subnotificado nos laudos é a respeito da presença de álcool ou drogas no sangue das vítimas, já que os exames toxicológicos são raramente solicitados pelas autoridades policiais ou apenas quando existe suspeita prévia. Embora estudos tenham apontado que boa parcela das vítimas de acidente de trânsito e homicídios (3.300 casos no 1º semestre de 2022) tenham provavelmente ingerido álcool ou drogas antes da morte, os laudos mencionam apenas 140 casos de intoxicação exógena, além de 57 menções a entorpecentes e 36 menções a álcool. São 233 menções num universo de quase 13 mil vítimas periciadas (1,8%). Novamente, aqui esta informação seria fundamental para criar políticas públicas para limitar o acesso a certas substâncias especialmente associadas às mortes. (Andreuccetti, Gabriel. Uso de álcool por vítimas de homicídio no município de São Paulo. Diss. Universidade de São Paulo, 2007; Souza, Jéssica Priscila de. Álcool em sangue de vítimas de morte violenta no município de São Paulo. Diss. Universidade de São Paulo, 2018.)
Causa mortis
As informações sobre causa mortis são mais abundantes, pois esta é a finalidade última da elaboração dos laudos. Chama-nos a atenção a não utilização de códigos para a descrição das causas e a enorme variedade de formas, não padronizadas, para descrever as mesmas causas. A tabela a seguir é uma representação agregada das expressões utilizadas, a fim de dar alguma uniformidade às classificações.
Mesmo após os exames iniciais, 8,3% dos casos são classificados como “causa indeterminada” e 1,4% como casos a “esclarecer” mediante exames complementares. Embora, em tese, o IML só atenda a casos de morte por causa externa ou suspeita, existem centenas de casos classificados como causas que evidenciam mortes naturais, como problemas cardíacos, respiratórios, AVCs e outras.
As categorias que mais se aproximam a causas externas são os traumatismos e as hemorragias internas, os primeiros associados predominantemente aos acidentes de trânsito e os segundos aos ferimentos por arma de fogo e agentes cortantes e perfurantes, associados por sua vez aos homicídios intencionais.
Novamente, apenas a título de comparação, lembramos que no período tivemos 1.708 vítimas de “Homicídios culposos por trânsito” – que tendem a provocar traumatismos. As duas primeiras linhas da tabela somam 3608 casos de traumatismos e é provável que os acidentes de trânsito estejam incluídos aí.
Por sua vez, os homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte somaram 1592 vítimas na estatística da Secretaria de Segurança no primeiro semestre de 2022. Tais vítimas tendem a apresentar ferimentos por meios (armas de fogo, facas) que tendem a provocar hemorragias internas. Com efeito, há 1.231 menções a hemorragias e 73 choques hemorrágicos nos laudos do IML. Os números, aqui, são relativamente próximos.
Trata-se de um dado interessante, pois embora não se possa inferir diretamente por esta evidência que se trata de um homicídio intencional, essa peça de informação, em conjunto com outros dados da vítima e outras provas, pode ser um elemento adicional para a determinação da natureza do evento. Ou seja, hemorragia pode eventualmente ser uma boa proxy para identificar homicídios dolosos. Seria interessante investigar se em outros Estados a quantidade de homicídios intencionais é próxima da quantidade de laudos apontando hemorragias como causa mortis. Com efeito, tanto uma análise de cluster de palavras quando uma análise de co-ocorrências feitas no QDA sugerem uma associação entre “hemorragia interna”, “ferimentos”, “arma de fogo”, “agente perfurante” e “agente contundente”.
Note-se também que os traumatismos são associados a “trânsito”, conforme sugerido anteriormente. A análise por faixa etária corrobora que tanto mortes por hemorragia quanto por traumatismos são mais frequentes entre os mais jovens, o que confirma indiretamente a associação, já que os jovens são as vítimas preferenciais tanto dos homicídios quanto dos acidentes de trânsito.
Não é o caso de nos estendermos demasiadamente sobre outras associações e análises que a base permite. Ao menos a partir do que é disponibilizado publicamente, é possível verificar que os laudos são pouco úteis para conhecer os meios utilizados ou o grau de intoxicação das vítimas. Mas traz informações complementares úteis para ajudar a determinar, em conjunto com outras evidências, como aquela morte ocorreu.
É interessante observar que as informações do sistema de saúde e do Datasus em particular são em geral bastante organizadas, mas quando se trata dos IMLs, subordinados às polícias, os registros médicos são pouco padronizados, talvez pela ausência de um bom sistema de coleta. As polícias científicas prestariam um grande serviço à segurança padronizando e disponibilizando seus dados de modo mais completo. E aperfeiçoando os laudos com a realização universal de exames toxicológicos. Dando maior atenção à questão dos meios e outras informações complementares.
As polícias científicas foram as precursoras no uso da ciência e das evidências robustas para elucidar casos de crimes individuais e podem contribuí também para o estudo “coletivo” do crime. O corpo fala, mas não fala sozinho. Para fazê-lo falar, é preciso investir na Polícia Científica. E utilizar os dados epidemiológicos não apenas para a elucidação de casos individuais, mas também para a elaboração de políticas preventivas.
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