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Verissimo: o humor como método

Para Rubens Figueiredo, o escritor que morreu no fim do mês passado transformou o trivial em reflexão, a piada em ensinamento e o inimaginável em possibilidade

Rubens Figueiredo, cientista político e colaborador do Espaço Democrático

Edição Scriptum

 

Há cronistas que observam e relatam com graça o cotidiano. E há os que, ao descrevê-lo, revelam o jeito que vivemos, nossas angústias, sonhos e o quanto somos demasiadamente humanos em momentos ridículos. Luis Fernando Verissimo pertence a essa segunda categoria. Com uma leveza que disfarça a profundidade, ele conseguiu o que poucos antropólogos diligentes ou sociólogos disciplinados alcançam: compreender e traduzir a lógica fascinante que rege as relações sociais e políticas no Brasil. Sem citar teses, mostrar gráficos ou sonhar com correlações estatísticas.

Tudo tem sua época, claro. E a produtividade de Verissimo fazia jus ao nome superlativo. Dois personagens criados por ele, ainda durante o regime militar, são absolutamente geniais. O Analista de Bagé era o psicanalista tosco que achava a maioria dos problemas de seus clientes pura frescura — e tratava as mazelas mentais na base do “joelhaço” nas partes íntimas do interlocutor. A graça do contraste entre a sofisticação estrutural da psicanálise e a rispidez de um gaúcho dos pampas, que entende — e, à sua maneira, “resolve” — as coisas já faz do analista um personagem antológico.

E o que dizer da Velhinha de Taubaté, criada nos anos 1980, fim da ditadura, que simbolizava a ingenuidade política, pois era a única pessoa no Brasil que ainda acreditava naquilo que as autoridades falavam? O governo monitorava a velhinha, pois tudo estaria perdido se ela deixasse de confiar em alguma explicação oficial. Com o escândalo do mensalão, em 2005, Verissimo “mata” a Velhinha de Taubaté. Tudo tem limite. Aparentemente, ela teria morrido em frente à TV — talvez devido a um choque depois de ver alguma notícia inacreditável até para ela.

O cronista, diferentemente do cientista social, não parte de uma hipótese nem busca regularidades no comportamento. É movido pela intuição. Fareja o que há de mais revelador nos gestos banais, nos diálogos corriqueiros, no jogo de pôquer ou numa lata de lixo. Verissimo captava, no cotidiano de um brasileiro médio, a fisiologia moral e emocional de uma sociedade inteira.

Talvez por isso tenha sido um dos escritores mais lidos do País. Suas crônicas foram publicadas nos principais jornais e reunidas em dezenas de livros. O humor era sua lente sociológica: através dele, Verissimo desmontava certezas, expunha o ridículo, denunciava a desigualdade e, sobretudo, nos fazia rir de nós mesmos — esse riso cúmplice que só a consciência de nossa própria fragilidade provoca.

Há um tipo de sabedoria que não nasce do estudo sistemático, mas da observação persistente, sensível e de um gênio criativo. Verissimo a possuía em grau raro. Era um stand-up improvável: extremamente tímido, avesso à exposição pessoal, e que se declarou, em entrevista, muito mais depressivo do que engraçado. Timidez, ironia, melancolia — Verissimo transformou o trivial em reflexão, a piada em ensinamento e o inimaginável em possibilidade. Ajudou o Brasil a se ver no espelho.

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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