Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Episódios de violência policial filmados recentemente em São Paulo reavivaram a questão, colocando o Estado no foco da polêmica e os especialistas, legisladores, Ministério da Justiça e comunidade debatendo o que fazer para reduzir o problema. O caso específico de São Paulo não é tanto o de sua elevada taxa de letalidade (1,76:100 mil), quando comparada à média nacional (4,4:100 mil), quanto o do crescimento intenso observado a partir de 2023, depois de três anos de queda consecutiva.
Esse crescimento fez com que as mortes em confronto retomassem a média anterior, observada no período 2017 a 2020, em torno de 700 casos por ano (considerando confrontos com a PM em serviço e supondo que em novembro e dezembro os números sejam parecidos). Uma guinada desta magnitude seria impressionante de toda forma, mas ela se tornou ainda mais “notável” em razão da trajetória e discurso do atual secretário de segurança paulista sobre o problema da violência policial, além de mudanças no projeto de câmeras corporais.
Os números absolutos de mortes em confronto atuais não estão fora do padrão histórico de São Paulo. As quedas de 2020 e 2021, do mesmo modo, também já ocorreram no passado por diversas vezes. A questão é entender, em cada momento, por que ocorrem estas fortes oscilações. Por exemplo, os aumentos de 1989 a 1992, depois do período de baixa de 1987 e 1988. Ou os aumentos de 2000 a 2003, depois do período de baixa de 1995 a 1997.
Acompanhando o fenômeno desde os anos 1990 como pesquisador, ativista (estava na porta do Carandiru com Maria Ignes Bierrenbach e Maria Helena Gregori no dia do massacre em 1992 e posteriormente na reunião do dia seguinte com o secretário Pedro Franco na Secretaria de Segurança Pública), e depois, dentro da secretaria, como secretário executivo da Comissão de Letalidade, hoje extinta.
Durante este período muita coisa foi tentada para reduzir a letalidade: aulas de direito da guerra com a Cruz Vermelha, criação da Ouvidoria de Polícia, manual de engajamento de bolso, mudança dos alvos para partes letais para as não-letais, compra de armamento não letal, afastamento para tratamento psicológico (PROAR), criação da comissão de letalidade no gabinete da secretaria, visitas ao Romão Gomes para testemunhar o que aconteceu com policiais que saíram da linha, curso de tiro com o método Giraldi, afastamento de policiais envolvidos em muitos casos, redução do bônus para unidades com elevada letalidade, câmeras corporais etc.
Poucas destas políticas públicas chegaram a ser avaliadas, mas acompanhando mensalmente as séries históricas de letalidade não é difícil observar alguns momentos marcantes, ou quebras nas séries e seus prováveis motivos: as maiores quedas ocorreram após os episódios do Carandiru (1992) e a forte repercussão do caso, durante o curto funcionamento do PROAR (2000 e 2001) e após a implementação das câmeras corporais em 2020 – este último objeto de avaliação robusta (ver Joana Monteiro, Avaliação do impacto do uso de câmeras corporais pela Polícia Militar do Estado de São Paulo).
Por outro lado, ainda que menos abruptos e visíveis, os períodos de aumento na letalidade parecem coincidir com gestões tipo manu dura na Secretaria de Segurança Pública e/ou no comando da PM. (ver Emanuel Nunes de Oliveira Junior, Letalidade da ação policial e teoria interacional: análise integrada do sistema paulista de segurança pública). O fato é que poucas das medidas adotadas para reduzir o problema parecem ser efetivas, com exceção aparente do programa de câmeras, de mudanças de gestões manu dura para gestões menos tolerantes com a letalidade e talvez o PROAR – não pelo atendimento psicológico per si, mas antes pelo medo do policial de perder o bico em razão do afastamento para o tratamento.
Se para entender a dinâmica temporal da letalidade é preciso observar as séries históricas, para entender sua magnitude e associações é pertinente observar as variações do fenômeno no espaço, comparando, por exemplo, os Estados brasileiros. Há uma grande variação nas taxas, que vão de 34:100 mil em Rondônia a 0,52:100 mil no Distrito Federal. Existem taxa altas e baixas em todas as regiões do País, de modo que a região não ajuda a explicar muito o fenômeno, embora as médias sejam um pouco superiores no Nordeste e Norte e menores no Sul.
Para explorar essa questão, fizemos uma regressão utilizando a taxa de letalidade de 2024 como variável dependente e 15 variáveis explicativas, extraídas da pesquisa Estadic, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, IBGE e outras fontes.
Para escolha do melhor modelo usamos o método de melhor subconjunto, com base no R2 ajustado. O método dos melhores conjuntos (ou best subsets regression) é uma abordagem usada na análise de regressão para selecionar o modelo que melhor explica a variabilidade dos dados, com base em um critério de ajuste, como o R2 ajustado. Esse método examina todos os possíveis subconjuntos de variáveis explicativas para identificar quais combinam de forma mais eficaz para prever a variável dependente.
Essa abordagem é especialmente útil em estudos exploratórios, onde há muitas variáveis independentes e o objetivo é identificar aquelas mais relevantes, garantindo um modelo equilibrado e parcimonioso. O modelo final tem um R2 de .53 e selecionou 10 das 15 variáveis iniciais, sendo 6 delas significativas com p < .005.
Quanto maior a taxa de homicídio doloso do Estado (tx33), maior a taxa de letalidade policial. Isto sugere que um ambiente de violência generalizado faz crescer a letalidade, talvez pela depreciação do valor da vida, medo durante abordagens em áreas de risco, cultura de violência, entre outros fatores. O dado corrobora os achados em Ceccato e Kahn, 2018 e a noção de que “violência gera violência”. (Ceccato V., Melo S., Kahn T. (2018). Trends and patterns of police-related deaths in Brazil. In Scott J., Carrington K., Sozzo M., Hogg R. (Eds.), The Palgrave handbook of criminology and the global south, (pp. 521–550). Springer International Publishing.)
Do mesmo modo, quanto maior a porcentagem média de urbanização do Estado (var00031), maior a taxa de letalidade policial. Com efeito, a letalidade costuma ser relativamente maior nas capitais e áreas metropolitanas, mais urbanizadas e que tem também maiores taxas de criminalidade. Talvez a pressão da população local sobre a polícia para a redução da criminalidade estimule as polícias a adotarem práticas mais violentas contra o crime nestas localidades.
No mesmo sentido, os Estados que declararam que não tem um Plano Estadual de Segurança Pública (ESEG24) apresentam as maiores taxas de letalidade. Isto não significa necessariamente que a adoção de um Plano de Segurança seja eficaz para reduzir a letalidade. Talvez exista um contexto em que gestões preocupadas em planejar a segurança sejam também gestões com menor tolerância à violência policial. De todo modo, simbolismo e discurso são importantes e um Plano de Segurança que aborde explicitamente o problema da letalidade policial manda uma mensagem para a tropa e para a sociedade e pode contribuir para amenizar o problema.
Finalmente, quanto maior a despesa per capita em segurança (descapita), maior a taxa de letalidade policial. Isto não significa que gastar mais em segurança aumente a letalidade; o mais provável é que os Estados com maior problema de letalidade e outros problemas criminais estejam gastando proporcionalmente mais em segurança, como é o caso de muitos Estados no Norte e Nordeste. Só conseguimos destrinchar a ordem temporal dos fatores com dados em painel, que infelizmente não dispomos.
Quanto maior a taxa de presos por habitante (tx55), menor a letalidade policial. Essa relação inversa sugere que pode existir um contraste entre estilos de polícias mais técnicas e profissionais, que “prendem”, versus polícias menos técnicas e profissionais, que optam pelo confronto para mostrar serviço.
Os Estados que não ofereceram curso de uso diferenciado da força em 2022 (ESEG4422) têm taxa de letalidade menor. Novamente aqui, por que a relação é invertida? Difícil supor que fornecer o curso de uso diferenciado da força aos policiais aumente a letalidade. É mais provável que sejam os Estados com elevadas taxas de letalidade que estejam oferecendo o curso neste momento, para minimizar o problema, o que faz com que a relação tenha um sinal negativo em virtude da causalidade reversa.
Finalmente, o coeficiente negativo mostra que os Estados que não tem um programa de redução de homicídios (ESEG26), tem taxas de letalidade menores do que os que têm. Novamente aqui, o mais plausível é que sejam precisamente os Estados com maiores taxas de letalidade os que também têm adotado programas de redução de homicídios, fazendo com que o sinal entre ambos se torne negativo, ao contrário do esperado.
As interpretações sobre os sinais encontrados estão em aberto, uma vez que é difícil saber a precedência temporal entre as variáveis, o que veio antes e o que veio depois.
Existem coisas que não podemos modificar, como a taxa de urbanização, e outras que podemos. O ideal seria fazer uma revisão sistemática da literatura em busca de medidas efetivas para lidar com o fenômeno. Infelizmente a literatura é escassa, pois o problema da violência policial afeta especialmente os países em desenvolvimento, onde são poucos os estudos mais robustos.
De todo modo, um cardápio emergencial para sair da crise parece envolver mudanças de discurso das autoridades policiais (o governador Tarcísio de Freitas parece ter entendido a mensagem), a expansão do programa de câmeras corporais, a adoção de um Plano de Segurança que mencione explicitamente a questão da letalidade e a retomada dos programas de acompanhamento psicológico dos policiais envolvidos em confronto. A retomada da Comissão de Letalidade e o convite às organizações da sociedade para tomarem parte nela – na minha gestão faziam parte a Ouvidoria, Corregedorias, Sou da Paz, Núcleo de Estudos da Violência, etc.. – pode ajudar a pensar em medidas e monitorar de perto a questão. Talvez seja o caso de colocar em prática mecanismos previstos, mas nunca operacionalizados, tais como a diminuição do bônus de metas para as unidades com elevada letalidade. O primeiro passo é o reconhecimento do problema e as imagens recorrentes deixam claro que não são casos isolados, mas algo sistêmico.
As estatísticas criminais de São Paulo mostram que as tendências criminais em queda são comuns à maioria dos Estados desde 2017, ao contrário das estatísticas de letalidade. As pesquisas de opinião mostram, por sua vez, o desgaste do governo na área de segurança, mas é claro que esse não deve ser o critério para pautar a conduta das polícias. Trata-se de respeitar o império da lei e o Estado de Direito, obrigações legal e moral das forças policiais.
Como apontaram recentemente em artigos na imprensa Bruno Paes Manso, Carolina Ricardo, Melissa Riso, Samira Bueno e diversos especialistas, deixar a rédea solta é arriscar que São Paulo reproduza o padrão que já ocorreu em outros Estados: uma polícia que não respeita o Estado de Direito abre as portas para as milícias, corrupção e o crime organizado.
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