Redação Scriptum
O economista Roberto Macedo costuma dizer que Persio Arida e André Lara Resende, os artífices do Plano Real, mereciam ganhar o Prêmio Nobel de Economia por sua obra, que promoveu a transformação na vida de milhões de brasileiros. Macedo fala com conhecimento de causa. Secretário de política econômica do Ministério da Fazenda e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no início da década de 1990, ele conhece como poucos os efeitos nefastos da hiperinflação sobre a sociedade brasileira nos anos que se seguiram à redemocratização.
Modesto, Arida atribui à generosidade do seu ex-professor na Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (USP) a sugestão de um prêmio pela criação e implementação do Plano Real, que está completando 30 anos. “Foi um privilégio, uma experiência absolutamente única formular uma teoria, não conseguir aplicá-la uma vez, ter uma segunda chance e enfim conseguir aplicá-la com sucesso”, diz o economista em entrevista ao programa Diálogos no Espaço Democrático, produzido pela fundação de estudos e formação política do PSD e disponível em seu canal de Youtube.
Na entrevista aos economistas Roberto Macedo e Luiz Alberto Machado, ao cientista político Rogério Schmitt, ao ex-deputado e coordenador de Relações Institucionais do Espaço Democrático, Vilmar Rocha, e ao jornalista Sérgio Rondino, âncora do programa de entrevistas, Arida contou não só como foi concebida a ideia do Plano Real, mas também algumas histórias de bastidores de alguns dos principais personagens envolvidos no projeto.
Economista formado pela USP, ele tem doutorado pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), lecionou na própria USP e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), período durante o qual ele e André Lara Rezende, a quem havia conhecido no MIT, estudaram profundamente a hiperinflação brasileira e desenvolveram a Teoria da Inflação Inercial. Foi a partir dela que desenvolveram a ideia de uma reforma no sistema monetário por meio da criação de uma moeda nova, que circularia junto com a da época, o cruzeiro, que aos poucos seria abandonado. A ideia passou a ser conhecida como Plano Larida (acrônimo dos nomes dos dois economistas) e poderia ter sido colocada em prática oito anos antes, em 1986, no governo de José Sarney, quando foi criado o Plano Cruzado.
Primeira tentativa
“Antes do Plano Cruzado eu conversei com o então procurador-geral da República, Saulo Ramos, sobre fazer algo com base no Plano Larida, usando uma moeda indexada, e a resposta dele foi direta: esqueça porque no Brasil só pode existir uma moeda, a Constituição não permite duas e o STF vai derrubar”, conta. “O plano ‘B’ era muito inferior, parecido com o que Israel havia feito um ano antes: congelamento temporário de preços e salários com base em acordo com centrais sindicais, algumas regras para mudar contratos, forte contração fiscal e política monetária bastante apertada”.
Olhando em retrospectiva, Arida considera que o Cruzado era um plano natimorto na medida em que não foi possível ajustar as políticas fiscal e monetária – o Banco Central não tinha independência para subir a taxa de juros. “Por uma certa ingenuidade nossa, não demos a devida atenção ao fato de que teríamos eleições em outubro daquele ano (para os governos dos Estados, Câmara Federal e Senado) e para os políticos, a tentação de estender o congelamento por muitos meses ficou irresistível”. Neste cenário, os gastos públicos aumentaram, e foi até mesmo introduzido um gatilho salarial de última hora no plano.
Congelamentos em série
Apesar do fracasso do Plano Cruzado, que parece ter incutido na classe política o conceito equivocado de que era necessário o congelamento de preços para segurar a inflação – foi assim em todos os planos de estabilização que vieram a seguir, Bresser, Verão, Collor 1 e Collor 2 – o economista acredita que a experiência parece ter fixado no imaginário coletivo a ideia de que era possível, ainda que temporariamente, estancar o processo inflacionário. “A inflação, entre os planos de estabilização, passou a ter uma dinâmica de expectativa pura: o empresário sabia que se ela subisse teria de enfrentar congelamento e aumentava os preços preventivamente – e sempre que a inflação subia os políticos queriam fazer outro congelamento, era a forma de manter a popularidade”, explicou. Este cenário só foi alterado quando Marcílio Marques Moreira assumiu o Ministério da Fazenda, depois de Fernando Collor ter desistido dos planos de estabilização. “A gestão do Marcílio foi a do bom senso, anunciou que não haveria plano, nem congelamento, e assim a inflação deixou de ter esse caráter de expectativa para voltar a ser inercial, ou seja, as condições para a implementação do Plano Larida voltaram”.
Já no governo de Itamar Franco e com Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda, Arida, então, foi conversar com José Tadeu de Chiara, professor de direito econômico do Largo São Francisco, para tentar derrubar a dificuldade jurídica que impediu a criação da moeda virtual oito anos antes. “Ele escreveu a minuta de criação da URV e, juridicamente, tornou tudo factível”, conta o economista.
Personagens
Na entrevista Arida falou sobre três dos principais personagens que estiveram envolvidos no processo de criação do Plano Real: o presidente Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e o embaixador Rubens Ricupero, que estava à frente do Ministério da Fazenda quando o plano foi implementado.
Fernando Henrique, segundo ele, tem um papel que define como “extraordinário” no processo. “Ele bancou a ideia que, se desse certo, lhe daria capital político excepcional, e se desse errado, seria o seu funeral político”, avalia. “O fato de ele ser um intelectual fez toda a diferença, mas Fernando Henrique também era um político, senador, tinha certa ascendência sobre o Itamar, que o respeitava muito, e muita sabedoria na conversa”, conta. “Fui com ele várias vezes conversar com o presidente, na Câmara, no Senado e ele conduzia a conversa com jeito único”.
Sobre Itamar Franco, acredita que “não tinha repertório intelectual para entender o programa”. A ideia central do presidente era aumentar salários e congelar preços. “Disso ele entendia e sabia que lhe daria popularidade, mas o Fernando Henrique teve a habilidade de convencê-lo a lançar um plano que ele nunca entendeu”. O economista conta que a conversa, com o Itamar, era sempre muito difícil. “Ele falava pouco e eu mesmo não conseguia entender o que ele não havia entendido; e é difícil explicar algo se você não entende o que o outro não entendeu”, diz. “Para mim, era uma conversa pedregosa”. Já Rubens Ricupero, de acordo com ele, teve o papel de um “pregador” nos meses cruciais em que esteve à frente do Ministério da Fazenda. “Entendeu o plano, não interferiu e fez uma peregrinação incansável para explicar o que estava acontecendo”.
Dos personagens que se colocaram contra o Plano Real, Arida rememorou uma conversa que teve com o então deputado federal em primeiro mandato Jair Bolsonaro. Ele quis saber se os salários dos militares teriam reajustes reais. “Eu respondi que não e, quando tentei explicar a razão, ele disse que aquilo era o suficiente: ia votar contra, e assim fez”.
Futuro
Olhando em perspectiva, Arida acredita que o controle da inflação no Brasil do século 21 está intrinsicamente ligado ao sistema democrático. “A inflação em 1970 (durante a ditadura) era de 12% ao ano e em 1980, 10 anos depois (ainda na ditadura) era de 100%; em um sistema democrático, se passasse de 12% para 100%, pode ter certeza de que o governo já teria caído”, diz. “O grande sustentáculo da estabilidade de preços é a opinião pública e no regime democrático, se o presidente deixar a inflação correr solta, não vai ser reeleito, o partido dele não vai se dar bem na eleição”. Arida destaca, porém, outras inquietações que diz ter. “Há um processo de empoderamento do Legislativo, e um processo de judicialização da política que estão tornando o País muito disfuncional”, aponta. “Territórios viraram Estados, Estados foram divididos e com isto ocorreu uma disfuncionalidade de representação enorme – na prática, Norte e Nordeste controlam o Senado e pelo teto controlam a Câmara”. Segundo ele, “há situações institucionais que preocupam, além das econômicas, mas sobre a estabilidade de preços estamos bem porque é um valor público”.