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Medidas provisórias contra desastres climáticos revelam ‘mapa das tragédias’

Só o Rio Grande do Sul foi destinatário de outras dez medidas provisórias com a liberação de recursos desde 2001; oito créditos extraordinários foram propostos pelo Executivo apenas nos últimos três anos

Os temporais no Rio Grande do Sul atingiram 461 cidades e deixaram mais de 150 mortos

 

 

Agência Senado

Edição: Scriptum

 

O Brasil não tem terremotos, vulcões ou tsunamis. Talvez por isso, o país tenha por muito tempo alimentado a ilusão de que a estabilidade geológica do território seria suficiente para garantir um futuro tranquilo. Livre de cataclismos devastadores, de tragédias provocadas por eventos naturais.

A catástrofe no Rio Grande do Sul provou da pior forma que tudo não passava de engano. Se não temos tremores de terra, rios de lava ou ondas gigantescas, somos ano a ano castigados por fenômenos climáticos. São catástrofes tupiniquins, geralmente associadas a condições extremas na incidência da chuva: ou o excesso ou a escassez absoluta.

No dia 11 de maio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva editou a MP 1.218/2024, que liberou R$ 12,1 bilhões para o Rio Grande do Sul. O valor anunciado para socorrer a população castigada pelas enchentes é o maior aporte de recursos emergenciais já proposto pelo Poder Executivo para mitigar os danos causados por catástrofes climáticas desde 2001, quando foi adotado o novo rito de tramitação para as medidas provisórias.

Nos últimos 24 anos, os presidentes da República pediram ao Congresso Nacional a liberação de R$ 76,8 bilhões em créditos extraordinários para esse tipo de ação. A tragédia gaúcha responde por 15,8% desses recursos. Os dados estão atualizados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Na exposição de motivos enviada ao Parlamento para justificar a abertura do crédito extraordinário, a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, afirma que o estado gaúcho “está passando por grande calamidade decorrente de desastres naturais de enormes proporções”.

Os temporais atingiram 461 cidades e deixaram mais de 150 mortos. De acordo com a Defesa Civil, 2,2 milhões de pessoas foram afetadas diretamente pelas enchentes. Mais de 600 mil pessoas tiveram de abandonar suas casas e neste momento há 78,1 mil vítimas em abrigos, além de 98 desaparecidos. Entre os estragos causados pelo evento climático, Tebet cita “destruição de estradas, lavouras, pontilhões e pontes; alagamentos; enxurradas que impedem a locomoção nos municípios; e danos à infraestrutura dos serviços públicos”.

74 medidas

A Agência Senado analisou todas as medidas provisórias editadas pelo Poder Executivo desde 2001. Das mais de 1,2 mil matérias publicadas nos mandatos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma RousseffMichel Temer e Jair Bolsonaro, 261 abrem créditos extraordinários para as mais diferentes finalidades — do enfrentamento à pandemia de Covid-19 à federalização de estradas. A verba para mitigar os danos causados por eventos climáticos se concentra em 74 medidas provisórias.

Os primeiros cinco meses de 2024 já respondem pelo maior volume de créditos extraordinários propostos em um só ano pelo Palácio do Planalto. Além da MP 1.218/2024, outras duas medidas provisórias liberaram recursos para o Rio de Janeiro (MP 1.210/2024) e para municípios de todo o País afetados pelo fenômeno “El Niño” (MP 1.214/2024). Juntas, as três matérias somam R$ 12,5 bilhões. Isso equivale a 16,3% dos créditos extraordinários abertos desde 2001.

Nos últimos 24 anos, só não houve MPs motivadas por eventos climáticos entre 2017 e 2019. O período coincide com a gestão de Michel Temer e com o primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro. Em todos os outros exercícios, o Poder Executivo pediu ao Congresso Nacional a liberação de recursos que variaram de R$ 96,8 milhões (2004) a R$ 11,3 bilhões (2013).

“Intensos e duradouros”

O ano com o maior número de MPs editadas foi 2023, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou nove proposições com valor global de R$ 2,2 bilhões. O ritmo acelerado de medidas provisórias no ano passado indica o agravamento dos danos provocados pelas mudanças climáticas.

“O fenômeno ‘El Niño’ continua causando impactos não previstos, que culminam em eventos intensos e duradouros. As ações de resposta são voltadas à aquisição de cestas de alimentos, água, colchões, ‘kits’ de higiene e de limpeza, combustível, telhas e limpeza urbana, tratando-se de medidas emergenciais, direcionadas à população e à retomada da normalidade no cenário do desastre”, explica o Poder Executivo em uma das medidas provisórias.

Das nove MPs publicadas em 2023, cinco direcionam recursos para o Rio Grande do Sul. Juntas, elas somam R$ 1,3 bilhão — mais da metade (56,5%) dos R$ 2,2 bilhões em créditos extraordinários propostos para mitigar danos de desastres climáticos naquele ano.

Os R$ 998,5 milhões restantes (43,5%) foram distribuídos entre dez Estados: Acre, Alagoas, Amazonas, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Roraima, Santa Catarina e São Paulo. Merece destaque a MP 1.195/2023, que liberou R$ 307,9 milhões para pescadores artesanais afetados pela estiagem.

Liberação imediata

A consultora Helena Assaf Bastos, da Consultoria de Orçamentos do Senado (Conorf), explica que a liberação de recursos por meio de créditos extraordinários torna mais rápida e menos burocrática a execução das despesas em momentos de calamidades.

— É de execução imediata. A medida provisória entra em vigor imediatamente para depois ser submetida à apreciação legislativa. Os recursos são muito mais acessíveis do que as dotações decorrentes da Lei Orçamentária Anual, que dependem da aprovação de projetos e de todo aquele trâmite. A ideia é que seja mais ágil — afirma.

Itinerário de catástrofes

Para cada MP enviada ao Poder Legislativo, a presidência da República precisa anexar uma exposição de motivos para justificar a relevância e a urgência do problema a ser enfrentado. No caso das 74 matérias relacionadas a eventos climáticos, os documentos encaminhados pelo Palácio do Planalto formam um mapa de tragédias, um itinerário de catástrofes que interligam o Norte ao Sul do País.

Embora os desastres climáticos se repitam ano a ano, algumas exposições de motivos sugerem uma aparente perplexidade do poder público com a natureza inesperada das calamidades. É o caso da MP 1.030/2021, que destinou R$ 556,6 milhões a vários Estados atingidos por enchentes. O então ministro da Fazenda, Paulo Guedes, afirmava na justificativa que a situação era marcada pela “imprevisibilidade” por conta “de chuvas intensas, que ocorreram em número 4,5 vezes maior que a média dos exercícios anteriores”.

Seja causado por enxurradas ou secas, o cenário de desolação costuma ocorrer de forma simultânea em diferentes pontos do País. É o que revela a MP 54/2002, que abriu crédito extraordinário de R$ 134,3 milhões. O dinheiro deveria ser usado para atender “localidades atingidas por fortes precipitações pluviométricas que provocaram inundações e desmoronamentos” em São Paulo e — ao mesmo tempo — socorrer municípios “atingidos pelos efeitos de forte estiagem” em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Piauí.

O caráter simultâneo das tragédias muitas vezes impede que se identifique com precisão o volume de recursos destinado a cada tipo de evento climático especificamente. Mas a leitura das medidas provisórias sugere que os temporais respondem por parte significativa dos créditos extraordinários.

Um exemplo disso é a MP 1.092/2021, que liberou R$ 794,4 milhões para diversas regiões. “Fortes chuvas deixaram milhares de pessoas desabrigadas ou desalojadas, em decorrência de alagamentos, deslizamentos de terra e danos à infraestrutura local, com interdição de estradas, quedas de pontes e viadutos e interrupção de fornecimento de energia elétrica e água potável”, justifica. Na Bahia, as enchentes daquele ano deixaram 80 mil desabrigados. Em Minas Gerais, o número de atingidos superou os 40 mil.

Outro caso de danos provocados pelo excesso de água ficou documentado na MP 1.180/2023, que destinou R$ 289,8 milhões para Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A norma teve como justificativa a “recuperação de infraestrutura destruída nos municípios afetados por desastres naturais recentes, em virtude de chuvas intensas que culminaram em inundações, enxurradas, alagamentos e fluxos de lama e detritos. Há registro de óbitos e desaparecidos e os desalojados somam mais de 4,6 mil pessoas e os desabrigados mais de 3,1 mil. A situação é grave”.

Estiagem

A seca é o outro lado da tragédia. Embora não haja um modelo padrão, as medidas provisórias contemplam quase sempre um mesmo rol de danos a serem enfrentados. A MP 105/2003 liberou R$ 432,6 milhões para Minas Gerais. O dinheiro deveria garantir “o abastecimento de água potável por meio de carros-pipa para amenizar a frustração de safra, a carência de alimentos, o desemprego rural, o esgotamento das reservas hídricas e a dizimação de rebanhos decorrentes da forte estiagem”.

A MP 262/2005, que liberou R$ 82,9 milhões, demonstra que a seca não castiga apenas os municípios nordestinos e mineiros sob o guarda-sol da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). O crédito extraordinário foi usado para “socorrer a população atingida pela forte estiagem no Amazonas”.

Segundo o documento, a escassez de chuvas provocou “desabastecimento alimentar e de combustível nas comunidades, além de falta de água potável e aumento de doenças”. “A seca comprometeu o sistema de transporte hidroviário da região, principal via de acesso das comunidades ribeirinhas e atinge mais de 28 dos 61 municípios, castigando uma população estimada em 167 mil pessoas residentes em 914 comunidades isoladas”.

Educação e Cultura

Os esforços de reconstrução em áreas afetadas por desastres climáticos estão concentrados especialmente nos ministérios da Integração e do Desenvolvimento Regional; dos Transportes; e da Defesa. As ações em áreas rurais contam ainda com a interface das pastas de Agricultura e Pecuária; Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar; e Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

Além desses ministérios, as medidas provisórias editadas desde 2001 direcionaram recursos para outras dez pastas, como Saúde; Cultura; e Educação. Entre as MPs editadas para a Saúde, três (MP 448/2008, MP 473/2009 e MP 498/2010) reservaram mais de R$ 722,5 milhões para compra de medicamentos, reforma de hospitais e “redução do elevado potencial de riscos à população residente nas áreas atingidas, principalmente crianças”.

No caso da Educação, a MP 490/2010 liberou R$ 443,3 milhões para “reconstruir, reformar e adequar a infraestrutura física predial de escolas públicas em função de prejuízos ocasionados por desastres naturais, tais como enchentes e deslizamentos de encostas, ocorridos em diversas localidades do País”.

Na Cultura, a MP 31/2002 destinou R$ 84 milhões para recuperação de obras de arte em Minas Gerais, Goiás, Maranhão, Pará e Tocantins. O dinheiro foi para municípios “atingidos por inundações e desmoronamentos provocados pelas intensas precipitações pluviométricas que deixaram inúmeros desabrigados, além do registro de mortes, prejuízos materiais e destruição de parte do patrimônio histórico”.

Rotina de intempéries

Nem sempre é possível identificar com precisão quais são os Estados beneficiados por uma medida provisória. Isso porque, em muitas delas, os recursos são destinados genericamente para as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Ainda assim, as MPs fazem referência explícita a catástrofes ocorridas em 23 das 27 unidades da Federação. Só não há menção direta a Amapá, Distrito Federal, Rio Grande do Norte e Sergipe.

O Rio Grande do Sul — castigado pelas chuvas deste ano e atendido pela recém editada MP 1.218/2024 — foi destinatário de outras dez medidas provisórias desde 2001. Como um indício de que as intempéries já fazem parte da rotina gaúcha e não deveriam ser tratadas como eventos imprevisíveis, oito créditos extraordinários foram propostos apenas nos últimos três anos: dois em 2022, cinco em 2023 e um em 2024.

A MP 1.193/2023 liberou R$ 200,1 milhões para vítimas de uma calamidade pública no Estado. “A Região Sul do País foi afetada por um ciclone extratropical, provocando tempestades acompanhadas de rajadas de vento que ultrapassaram os 100 km/h, causando danos a diversos bens públicos e privados, assim como o óbito de 48 pessoas”, destaca o documento.

A exposição de motivos assinada pela ministra do Planejamento, Simone Tebet, descreve uma série de danos provocados pelas cheias no Rio Grande do Sul. Ainda que preso às amarras da técnica legislativa, o texto tem o poder de emocionar, de transportar o leitor para o cenário de comoção e terror em que se transformou o estado gaúcho. Mais do que isso: escrito em novembro do ano passado, o documento é como uma previsão de futuro. Um presságio do que viria seis meses depois.

“O impacto do evento climático no Rio Grande do Sul foi particularmente deletério para as populações de baixa renda, comprometendo fortemente seu patrimônio, tendo a habitação de muitos moradores sido danificada, parte delas de forma permanente e irrecuperável. Embora não necessariamente estivessem em área de risco, muitas dessas habitações não poderão ser reocupadas ou reconstruídas nos mesmos locais, frente à demonstração de impacto que os eventos climáticos descortinaram”.

Era quase uma profecia.


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