Redação Scriptum
Com seu tarifaço contra amigos e inimigos geopolíticos, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, pode ter jogado a pá de cal no sistema multilateral de comércio baseado em regras regulado pela Organização Mundial de Comércio (OMC). Mas este não é um empreendimento pessoal e nem mesmo exclusivo do Partido Republicano, controlado hoje pelo presidente. “É importante desmistificar isto”, diz Lucas Ferraz, coordenador do núcleo de Estudos Globais da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, e ex-secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia entre 2019 e 2022.
“É um movimento bipartidário, que cresceu dentro do governo americano no segundo mandato do democrata Barack Obama a partir de uma percepção que se tornou cada vez mais forte, de que a OMC não conseguiria moldar a China às práticas de mercado das economias capitalistas, expectativa que os americanos tinham em 2001, quando o país asiático foi admitido na organização”, diz.
Em palestra sobre o cenário geoeconômico mundial após o tarifaço de Trump, Ferraz, que é professor da FGV há mais de 20 anos e entre 2023 e 2024 foi secretário de Negócios Internacionais do Governo de São Paulo, disse que esta percepção americana não deixa de ter suas razões: “A China tem práticas comerciais que confrontam as regras da OMC”. Ele lembrou, por exemplo, que embora seja o segundo maior comercializador do mundo, uma potência na área internacional, a China ainda se declara como país em desenvolvimento na OMC, e por esta razão tem tratamento especial e diferenciado em uma série de negociações. “O mesmo tratamento do Camboja e do Sri Lanka, por exemplo, pobres e em desenvolvimento”.
Cenário de fundo
Para o especialista em comércio e relações internacionais, os Estados Unidos passam por um grande problema doméstico, que é o pano de fundo político desde cenário disruptivo que tem sua face mais exposta no choque tarifário: a desigualdade social associada à perda de emprego no setor de manufatura, fatores que geram grande tensão social. “São dois problemas que vêm ocorrendo pelo menos desde a década de 1960 e não estão diretamente associados à globalização e nem à China, que entrou para valer na economia global na década de 1970”. Segundo ele, “os políticos, Trump inclusive, fazem esta correlação e atribuem os dois fenômenos à globalização, e em especial à China”.
Ele aponta estudos empíricos que mostram que o causador da desigualdade e da perda de empregos, sobretudo para trabalhadores de menor qualificação, foi a automação acelerada. “Se compararmos a tendência de queda no emprego industrial entre 1960 e 1980, ou seja, pré-China, com a tendência entre 1980 e 2010, veremos que é a mesma, não houve mudança”.
Ferraz acredita que as razões para os dois fenômenos são estruturais, e pergunta: por que os Estados Unidos tiveram tantos problemas e outros países desenvolvidos, como o Canadá e os da União Europeia, nem tanto? “A particularidade é que desde a década de 1980, os anos da era Ronald Reagan, há o desmonte do sistema de seguridade social americano; não tem colchão social, o desemprego não tem o amparo de uma rede de proteção social”, aponta. “Além disso, há um outro aspecto, o de que os americanos sempre foram caracterizados como pessoas que migram muito, se deslocam de uma região para outra para trabalhar, mas isto deixou de acontecer nos anos 1990, quando o país se tornou uma potência tecnológica de alto valor agregado, oferecendo uma concentração grande de atividades que requerem qualificação em boa parte das maiores cidades americanas; quem perdia emprego e não tinha qualificação para as vagas que se abriam, ficava para trás”, diz. Também contribuiu para excluir este contingente de desempregados o fato de que nessas grandes cidades, onde havia oferta de vagas qualificadas, o custo das moradias ficou alto demais e os trabalhadores sem qualificação não têm dinheiro para morar ali”.
O especialista aponta que como os sucessivos governos americanos, republicanos e democratas, não resolveram o problema, abriu-se espaço para o populismo. “O problema não está aqui dentro, é a China, é a globalização, diziam, com a promessa de levar o país de volta ao início do século 20, quando os Estados Unidos tinham tarifas altas, cresciam mais e geravam mais renda, o que não é verdadeiro”, explica. “O grande período de prosperidade americana foi no pós-guerra, foi o país que mais se beneficiou do sistema multilateral baseado em regras”.

Outro tema discutido no encontro semanal do Espaço Democrático foi o das pesquisas de avaliação do governo e de intenção de voto para a eleição presidencial do ano que vem.
Liberation day
Ferraz enfatizou que agora Trump dobrou a aposta do seu primeiro mandato, que já evidenciara resultados ruins com o movimento de aumento de tarifas de importação. Na época, lembrou, a guerra bilateral que manteve com a China na questão do aço, quando subiu a tarifa de 3% para 20%, o resultado foi que para cada vaga de emprego gerada no setor siderúrgico americano protegido, duas foram perdidas na cadeia produtiva que comprava esses insumos – automóveis, máquinas e equipamentos e construção civil. “Pior: a indústria americana teria tido queda de 8% na exportação de bens industriais com a perda de competitividade, por ter insumos mais caros, e quem ficou com esta conta foi o consumidor americano, que pagou o repasse integral das tarifas de importação”, afirmou.
O professor da FGV lembrou que naquilo que Trump chamou de liberation day, o anúncio das tarifas, foi exibido o resultado de “uma fórmula de mesa de bar, na qual pegaram o déficit comercial com cada país e dividiram pelas importações feitas por eles”. Segundo ele, “as tarifas não têm nada de científicas ou recíprocas, são baseadas apenas na obsessão que o presidente tem de que os Estados Unidos são explorados por aqueles países com os quais têm déficits comerciais”.
Oportunidades
Ele considera que o desmonte da OMC é preocupante para o Brasil porque “em um mundo sem regras, quem perde mais é quem tem menos poder de barganha, é a lei da selva, a do mais forte, e não temos condições de sentar para negociar com os Estados Unidos”. Assim, mesmo tendo apoiado o Projeto de Lei da reciprocidade comercial, que permite ao governo brasileiro retaliar medidas que prejudiquem os produtos do país no mercado internacional, não é favorável a qualquer tipo de reciprocidade às tarifas de 10% que foram impostas aos produtos brasileiros. “Temos que buscar a via da diplomacia, da negociação, e tentar extrair o melhor diálogo possível neste momento que é de calma e racionalidade”, disse. “O Brasil tem diplomacia preparada e talhada para isto”.
Segundo Ferraz, em certa medida o Brasil já se beneficiou. “A decisão americana deve vencer a resistência francesa ao acordo com o Mercosul”, diz. E destaca que onde há crise há oportunidades: “Brasil e Mercosul estão com acordos parados com o Canadá e o México, mas têm que ter olhar especial para a Ásia, onde está mais de 50% do nosso comércio”. Ele apontou que o País “precisa vencer o lobby da indústria brasileira, que é forte e a quem não interessa acordos para importação de bens industrializados”.
Contradições nas pesquisas
Outro tema discutido no encontro foi o das pesquisas de avaliação do governo e de intenção de voto para a eleição presidencial do ano que vem. O cientista político Rogério Schmitt exibiu as contradições levantadas pelas últimas pesquisas da Quaest e do DataFolha.
Os dois institutos revelam que os índices de popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, refletidos no desempenho do governo, nunca foram tão baixos – e Schimitt enfatiza que historicamente este tipo de pesquisa é o melhor preditor das chances de reeleição para um presidente. Em contrapartida, as pesquisas de intenção de voto para 2026 mostram que Lula lidera em todos os cenários de primeiro e segundo turnos, inclusive naqueles que incluem o ex-presidente Jair Bolsonaro, que está inelegível. “O desempenho do candidato Lula é melhor do que o do presidente Lula”, diz o cientista político.
Participaram da reunião semanal do Espaço Democrático o superintendente da fundação, João Francisco Aprá, os economistas Luiz Alberto Machado e Roberto Macedo, os cientistas políticos Rubens Figueiredo e Rogério Schmitt, o sociólogo Tulio Kahn, os gestores públicos Mário Pardini e José Luiz Portella, o médico sanitarista e ambientalista Eduardo Jorge, os advogados Roberto Ordine e Helio Michelini, a secretária do PSD Mulher nacional, Ivani Boscolo, o ex-presidente da Sociedade Rural Brasileira Cesário Ramalho e os jornalistas Eduardo Mattos e Sérgio Rondino, coordenador de comunicação da fundação do PSD.