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Caso Samarco: campanha destaca histórias pessoais e cobra justiça 

Movimento dos Atingidos por Barragem lançou campanha reunindo relatos das vítimas dos acontecimentos de novembro de 2015

[caption id="attachment_37167" align="aligncenter" width="754"] Ruínas em Paracatu de Baixo, distrito de Mariana, após dois anos da tragédia do rompimento da Barragem de Fundão )[/caption] Texto: Estação do Autor com Agência Brasil Edição: Scriptum  Há oito anos, na zona rural de Mariana (MG), acontecia o trágico rompimento da barragem da mineradora Samarco. Uma avalanche de rejeitos foi liberada e escoou pela bacia do Rio Doce, alcançando a foz no Espírito Santo. Dezenas de comunidades e municípios sofreram o impacto. Para dar visibilidade a histórias pessoais envolvendo a catástrofe, o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) lançou uma campanha reunindo relatos das vítimas dos acontecimentos daquele 5 de novembro de 2015. Reportagem de Léo Rodrigues para a Agência Brasil destaca a importância da publicação intitulada Revida Mariana, que tem como objetivo cobrar por justiça e dar voz às vítimas. O conteúdo da campanha já está acessível por meio de um site e pelas redes sociais. Para reparar os danos sofridos na tragédia, um acordo foi firmado em 2016 entre o governo federal, os de Minas Gerais e do Espírito Santo, a Samarco e as acionistas Vale e BHP Billiton. A partir de então foi criada a Fundação Renova, entidade responsável pela gestão de mais de 40 programas de apoio. Porém, o processo está marcado pela insatisfação e ações judiciais. Até hoje as obras de reconstrução das duas comunidades mais destruídas não foram concluídas. Existem ainda divergências sobre o processo indenizatório. O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) chegou a pedir a extinção da Fundação Renova por entender que ela não tem a devida autonomia frente às três mineradoras. Para o Movimento dos Atingidos por Barragem um desfecho efetivo para a reparação só acontecerá se houver poder de decisão das vítimas. Descontentes com o andamento da situação no Brasil, milhares de pessoas buscam solução na Justiça do Reino Unido. Representados pelo escritório Pogust Goodhead, eles processam a BHP Billiton, com sede em Londres. Recentemente, a inclusão da Vale como ré passou a ser discutida no processo jurídico. Apesar dos entraves, o MAB manifesta expectativa de uma decisão favorável às vítimas. "Se no Brasil a Justiça caminha a passos lentos há quase oito anos, lá fora, nos tribunais do Reino Unido, tudo leva a crer que os atingidos serão ouvidos", registra a nota divulgada pela entidade.  

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As pesquisas de vitimização e a comparabilidade com os registros oficiais

Sociólogo Tulio Kahn, especialista em segurança pública, analisa dados de crimes

  Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático Nem todos os crimes são registrados pelas vítimas junto aos órgãos policiais, resultando no que os criminólogos chamam de cifras ocultas – sejam cinzas (crime comunicado, mas não registrado) ou negras (não comunicado). Para estimar a quantidade e tendências de crimes são realizadas esporadicamente as pesquisas de vitimização junto a uma amostra representativa da população. Na pesquisa, pergunta-se ao entrevistado se foi vítima de determinado crime nos últimos “N” meses ou anos, se registrou o crime na polícia, motivos para o registro ou não registro, sensação de segurança e diversas outras questões de interesse. Trata-se de uma ferramenta importante para avaliar se determinada tendência criminal se deve a variações no fenômeno em si ou nas taxas de notificação. Tive a oportunidade de participar de diversas delas, como as realizadas na cidade de São Paulo em 1997, pelo Ilanud, 2002, pelo Gabinete de Segurança Institucional, e 2014, pelo Ministério da Justiça, usando a metodologia do UNICRI. Quando na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, junto com o SEADE, pegamos carona na Pesquisa Emprego e Desemprego para realizar pesquisas de vitimização enxutas na Região Metropolitana, a cada três meses, entre 2005 e 2009. Outras organizações, usando metodologias diferentes, realizaram outras pesquisas de vitimização na cidade de São Paulo, como o Instituto Futuro Brasil, ligado ao Insper, que já conduziu cinco rodadas entre 2003 e 2023. As pesquisas sugerem um ligeiro crescimento dos furtos pessoais no período, confirmando a tendência de crescimento nos registros oficiais e que em média 12,2% dos paulistas foram vítimas de furtos nestes anos. Quanto ao roubo e furto de veículos, as pesquisas de vitimização sugerem uma estabilidade na modalidade, em torno de 6% de vitimização anual, tomando apenas os proprietários de veículos. Alguma queda pode ser captada comparando as pesquisas de 2002 e 2003 com a última, divulgada este ano, novamente corroborando a tendência de queda dos registros oficiais. A prevalência de roubos gira de forma estável em torno de 7,4% e as agressões físicas vitimam em torno de 3,4% dos paulistas. Finalmente, os roubos a residências parecem atingir aproximadamente 1,4% dos moradores da cidade. As pesquisas parecem produzir estimativas relativamente estáveis e confiáveis sobre o montante da criminalidade na cidade e ajudam a calibrar as estimativas oficiais, em geral subnotificadas. É preciso ter em mente que é muito difícil comparar as duas fontes, por diversas razões: as pesquisas de vitimização são amostrais e probabilísticas, entrevistam apenas moradores com mais de 16 anos, não utilizam definições legais dos crimes, dependem da memória precisa do entrevistado com relação ao evento e quando ele ocorreu exatamente etc. Assim, por exemplo, é conhecido o “efeito telescópico” nas pesquisas de vitimização, onde os crimes mais sérios tendem a ser mais lembrados e imputados dentro do período de 12 meses, enquanto os menos sérios tendem a ser esquecidos (telescope out). Na pesquisa de vitimização, apenas um entrevistado é sorteado para responder ao questionário, falando em nome da residência, e ele não sabe necessariamente de todos os crimes que podem ter vitimado outros moradores da residência. Estes são apenas alguns exemplos de porque não se deve esperar que as estimativas levantadas pelas pesquisas de vitimização sejam iguais aos registros oficiais de criminalidade. A expectativa, contudo, é que os dados sejam “congruentes” em termos de magnitude e tendências. As estimativas levantadas nas pesquisas de vitimização são congruentes com os dados oficiais para a cidade de São Paulo? Para responder a esta pergunta, é preciso fazer uma série de adaptações para “aproximar” as diferentes fontes e o problema principal reside em conseguir boas estimativas de população, frota circulante e residências, entre outras. Assim, por exemplo, acreditamos que não convém usar toda a população da Capital ou toda a população maior de 16 anos no denominador para fazer as projeções de crime, como usualmente se faz. Como vitimização tem relação com estilo de vida, como sugerem os dados, devemos talvez desconsiderar a população que não circula diariamente pela cidade, como idosos, donas de casa, doentes, pessoas que trabalham em casa em home office, pessoas com estilos de vida caseiros etc. Para chegar a esta estimativa mais sóbria, utilizamos as porcentagens da pesquisa OD 2017 de população da RMSP por condição atividade, somando as condições “tem trabalho regular” e “faz bico”, mas excluindo pessoas em licença médica, aposentados e pensionistas, sem trabalho e nunca trabalhou, dona de casa e estudantes, uma vez que a amostra de vitimização não inclui a população menor de 16 anos. Em suma, teríamos aproximadamente cerca de 5,1 milhões de “vítimas” em potencial circulando pela cidade, o que equivale a apenas 44 % dos moradores de São Paulo. A título de comparação, se tomássemos apenas a população de 16 anos e mais na cidade no denominador (9.32 mi), o número de crimes projetados seria muito maior, correspondendo a 81% dos moradores da cidade. Com base nesta população e nas porcentagens médias de prevalência da pesquisa de vitimização, estimamos em 620 mil os furtos por ano na cidade e em 377 mil roubos. Usando a mesma base, obtemos a projeção de 173 mil agressões físicas em São Paulo a cada ano. Para os roubos e furtos de veículos, a pesquisa de vitimização leva em conta apenas os proprietários, de modo que também precisamos ajustar os dados oficiais com relação a frota circulante, que como vimos está em torno de 2,4 milhões de carros e motos (1/3 da frota registrada). Novamente aqui, o risco é maior para a frota que efetivamente circula pela cidade, mais exposta, em comparação aos veículos guardados ou por algum motivo parados (danificados, com placa no rodízio, mais de um veículo de um mesmo proprietário etc.). Levando em conta os dados médios de prevalência da pesquisa de vitimização, estimamos em 144 mil veículos roubados ou furtados anualmente na cidade. Finalmente, nos roubos a residência, as casas estão mais expostas do que os apartamentos, de modo que optamos por levar em consideração apenas a quantidade de casas na cidade, que gira em torno de 1,4 mihão. Usando as estimativas de vitimização e sabendo que os roubos em residência representaram 1,63% dos roubos em 2022 (SSP-SP), teríamos algo em torno de 19 mil residências roubadas anualmente na cidade. Como se vê, trata-se apenas de um exercício, pois é preciso fazer uma série de suposições sobre os denominadores em cada caso: população, veículos e residências que correm mais risco, ao invés de trabalhar com os totais. Como pode se depreender dos dados analisados, com exceção dos roubos e furtos de veículos, as estimativas calculadas são “congruentes”. Estimamos que os furtos registrados na Secretaria de Segurança Pública representam apenas 38% dos furtos ocorridos e, com efeito, apenas 37% das vítimas de furto relataram ter notificado o crime à polícia. Estimamos que as agressões físicas registradas nos boletins de ocorrência equivalem a apenas 17% das agressões sofridas e novamente somente 20% das vítimas de agressões relataram ter notificado o fato à polícia. No caso dos roubos e roubos à residências, as diferenças foram um pouco maiores, mas ainda assim creio que bastante razoáveis, quando comparamos as duas formas de projeção. De modo geral, os crimes registrados nos boletins ficaram bastante próximos da fórmula crimes projetados * % notificação pela vítima. A exceção clara aqui foram os roubos e furtos de veículos, justamente o delito onde as estatísticas oficiais são mais precisas, uma vez que a notificação é quase universal em virtude de valor do bem e exigência de seguro. Se a notificação é de 95%, o que acredito ser preciso, e os registros oficiais somam 58 mil subtrações de veículos na Capital em 2022, a projeção está claramente superestimada. Aqui, então, temos duas possibilidades para a projeção ter saído superestimada: ou a prevalência de 6% dos proprietários vitimados é exagerada, ou a frota circulante de 2.4 mi está exagerada. Ou ambas. A prevalência pode ser menor que 6%: o roubo ou furto de um veículo é algo que a vítima sempre vai lembrar, dado o valor e a importância do bem para o dia a dia. É possível então que crimes ocorridos fora do intervalo temporal de 12 meses tenham sido jogados para dentro do intervalo (efeito telescope in, inflando a estimativa). Com relação à frota, existem algumas hipóteses: conjectura-se em todo mundo que uma das causas da queda universal dos roubos e furtos de automóveis está no aumento da dificuldade em levar e revender o veículo, em função das modernas tecnologias. Alarmes, travas, marcação de partes do veículo, rastreamento, etc. tornam os novos carros mais difíceis de serem subtraídos. Assim, para além da quantidade de veículos em circulação, seria preciso conhecer também algumas características da frota, uma vez que parte dela não é do interesse dos criminosos, seja pela dificuldade de efetuar o criem, seja simplesmente por uma questão de mercado, que privilegia os veículos populares. O fato é que, se acreditamos que a prevalência de roubo e furto de veículos de 6% na cidade é uma estimativa razoável e que faz sentido uma taxa de notificação em torno de 95%, a frota circulante precisaria ser bem menor (cerca de 1 milhão de veículos), para chegarmos aos 58 mil BOs registrados pela secretaria. Alguma coisa não bate, precisamente no tipo de crime cuja estatística deveria ser mais confiável. Como alertamos de início, lidamos com metodologias diferentes e complementares e é pouco recomendável comparar resultados de pesquisas de vitimização com registros oficiais de criminalidade. Mas se nunca serão iguais, os resultados devem pelo menos ser congruentes. Vimos que a congruência é obtida quando trabalhamos com os conceitos de população, frota e residências “em risco”, para os casos de furtos, roubos, agressões físicas e roubos em residências. Mas as diferenças são enormes no caso dos roubos e furtos de veículos. A hipótese mais plausível é que a frota utilizada para projetar o número de crimes esteja equivocada, para mais. Seria interessante averiguar se o mesmo problema ocorre em outros Estados e países. Se acreditamos que as estimativas produzidas pelas pesquisas de vitimização são válidas, então precisamos encontrar os denominadores adequados para chegar a um total de crimes que seja minimamente congruente com as estatísticas oficiais. Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.  

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Motivação dos homicídios no Brasil

Sociólogo Tulio Kahn, especialista em segurança publica, defende a realização de um estudo nacional sobre o tema

Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático Edição Scriptum Diversos levantamentos e estudos tem procurado entender a motivação por trás dos muitos homicídios no Brasil. Chamamos de “levantamentos” os dados compilados pelas polícias e órgãos do sistema de justiça criminal, e de “estudos”, o material de cunho mais acadêmico. Grande parte dessa literatura – em especial os levantamentos feitos pelas polícias – e da mídia tende a privilegiar o papel das disputas entre as facções ligadas ao tráfico de drogas neste problema. Papel que é significativo, mas está longe de esgotar a questão das motivações ou das dinâmicas por traz das tendências dos homicídios. O problema é que não temos nenhum estudo abrangente, nem metodologias e categorias padronizadas, que tenha produzido uma estimativa consensual. Analisando esta literatura, encontrei dezenas de classificações diferentes e agrupei as diferentes categorizações em 14 motivos principais. Entre eles – além das mortes entre traficantes e usuários relacionadas a drogas – temos:   * As ações de gangues em disputas por mercados além das drogas, como é o caso das milícias ou organizações focadas em outros crimes, como roubos a banco ou carga. Disputas pelo poder dentro e fora das penitenciárias podem ser incluídas nesta categoria. * Temos os crimes provocados por vingança e acerto de dívidas, principalmente entre grupos criminosos. E as vinganças interpessoais ligadas a questões de honra e masculinidade. * Os desentendimentos fúteis entre desconhecidos, não premeditados, como as brigas de bar e de trânsito estimuladas pelo consumo de álcool. * Ainda, os homicídios passionais e domésticos, também no grupo dos assassinatos não premeditados e interpessoais. Os feminicídios, antes simplesmente homicídios de mulheres por motivo fútil (ciúme) ou torpe, entram nesta categoria. * Os latrocínios. * As mortes praticadas em legítima defesa própria ou de outrem. * As mortes por ambição, cujo objetivo é o de apropriação de terras, minérios, bens, heranças, seguros e outros bens patrimoniais. * A pistolagem de cunho político. * As mortes em confronto com a polícia. * As balas perdidas e erros de pessoa. * Os casos ligados a homofobia ou racismo. A lista está longe de ser exaustiva (ou mutuamente exclusiva) e inclui grandes categorias, nas quais: * A motivação simplesmente não pode ser classificada por falta de informações ou foi classificada em “outros”, como por exemplo os homicídios sexuais ou onde o autor sofria de sérios problemas mentais, os ataques coletivos em escolas, assassinatos seriais e diversas outras situações onde a pequena quantidade de casos não justifica a criação de uma nova categorização. Além da diversidade de categorias, as pesquisas são também bastante variadas no que diz respeito às metodologias, amostras, fontes, áreas e períodos em que foram realizadas. A diversidade é grande ao ponto de ser temerária qualquer comparação ou “consolidação” dos achados, do tipo que pode tentar em meta-análises ou revisões sistemáticas. Resumindo alguns dos problemas de comparabilidade dos 45 trabalhos encontrados, observamos que: * Categorias de motivos utilizadas nos estudos para a classificação dos homicídios são diferentes em quantidade e definições; o número de categorias variou de cinco a 14, com média de 8,1; quanto maior o número de categorias, maior a fragmentação de cada uma. * Categorias não são mutuamente exclusivas; há uma mistura de motivos, com modus operandi (execução), local (estabelecimentos penitenciários) ou tipo de executor (milícia). * Alguns estudos focam apenas nos homicídios dolosos (art. 121), enquanto outros analisam outras mortes violentas, como latrocínios e confrontos com a polícia. * Alguns estudos trabalham com amostras que podem ser enviesadas (departamento de homicídios, que privilegiam autoria desconhecida), enquanto outros trabalham com o universo dos homicídios em determinado ano e local. Alguns estudos analisam dados de cidades, especialmente capitais e Regiões Metropolitanas – onde o tráfico tende a ser mais relevante – e outros dados de Estados. * As fontes podem ser diferentes: uns usam BOs e outros Inquéritos ou laudos do IML. * Períodos são diferentes e frequências em cada categoria podem mudar nos diferentes períodos, segundo os interesses da conjuntura. * Alguns estudos calculam as porcentagens das classes utilizando todos os homicídios e outros utilizando apenas os homicídios para os quais existe uma classificação de motivação conhecida. A frequência de cada categoria varia bastante, dependendo da taxa de esclarecimento local. * Perfil dos homicídios muda conforme a região e em alguns Estados as causas são bastante específicas, tais como conflitos agrários (Norte e Nordeste), bala perdida ou ação das milícias (Rio de Janeiro). * Com todas estas diferenças, é fácil entender porque as conclusões são muitas vezes díspares – com a categoria “tráfico” variando de 0% a 78% na participação nos homicídios – e as dificuldades em tentar algum tipo de comparação ou consolidação dos resultados. A variação é enorme e isso provavelmente tem relação com as diferenças metodológicas entre os levantamentos e estudos, diferenças regionais e outras acima elencadas. É como tentar medir “inflação” usando diferentes definições, cesta de produtos, lugares e períodos. Dificilmente conseguiríamos traçar uma política de combate à inflação e essa é umas das muitas razões pela qual o País falha na elaboração de uma política pública consistente de combate aos homicídios. Feitas estas admoestações, e apenas para satisfazer a curiosidade do leitor, observamos que a média de motivação “tráfico” foi de 32% e a mediana 30% – sabendo que comparamos bananas e maçãs e ainda algumas carambolas. Algumas considerações sobre o material que julgo apropriadas:

  1. As pesquisas acadêmicas mais “robustas” parecem produzir estimativas ao redor de 20% e 30% (Scorzafave, Cerqueira, Campagnac, Lima, Sapori, Dirk, Mingardi, etc.). Não sabemos se a estimativa de 30% obtida é apropriada. Mas sabemos, com grande probabilidade, que ela não é 0 nem 78%;
  2. Os “levantamentos” produzidos pelos órgãos do sistema de justiça tendem a sobrevalorizar o papel do tráfico e drogas como motivação (média de 41,7%), enquanto os “estudos” de cunho acadêmico observaram médias bem inferiores (média de 24,7%);
  3. Foram feitos no Nordeste 13 dos 45 trabalhos e a media de “tráfico” cresce para 37% na região. No Sudeste (16 trabalhos), a média foi de 30%;
  4. Existe um grande número de homicídios sem motivação conhecida, como discutido. Há maior chance de eles estarem relacionados ao tráfico, mas também a disputas entre outras “gangues”, “ambição”, “mortes pela polícia” ou diversos outros crimes premeditados e “bem” executados. Sim, a motivação “tráfico” deve estar subestimada, mas não há razão para alocar todos os casos “sem motivação conhecida” apenas nesta categoria.
Existem muitas “narrativas”, para usar um termo que se tornou corrente, sobre o papel preponderante das facções ligadas ao tráfico na dinâmica criminal extramuros, seja para explicar quedas ou aumentos dos homicídios, conforme a conveniência da conjuntura. Embora significante, a dinâmica das facções e seu papel na dinâmica dos homicídios – que é clara para certos Estados e períodos – não é o único motivo explicativo para o fenômeno, como eu e diversos outros analistas insistimos. Um passo importante para avançar nesta polêmica seria realizar um grande estudo nacional sobre essa lacuna no conhecimento criminológico. Em algum momento, o governo federal e/ou grupos de pesquisa deverão definir categorias de “motivações”, definições e metodologia unificadas para conseguirmos uma aproximação mais fiel do papel das facções ligadas ao tráfico na dinâmica dos homicídios. Pois o que temos no momento são estudos locais e parciais, não comparáveis e tampouco generalizáveis. Bibliografia Andrade, R. M. (2016). Violência letal na cidade de Salvador-BA: Uma análise da gestão das informações criminais produzidas pelo sistema de defesa social. Barata, Rita Barradas, Manoel Carlos Sampaio de Almeida Ribeiro, and Meri De Sordi. "Desigualdades sociais e homicídios na cidade de São Paulo, 1998." Revista Brasileira de Epidemiologia 11 (2008): 3-13. BRITTO, Cristiano Quirino de. Violência e homicídios relacionados ao tráfico de drogas, em Uberlândia - MG. 2017. 236 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2017. DOI Campos, Maria Elda Alves de Lacerda, et al. "Mortes por homicídio em município da Região Nordeste do Brasil, 2004-2006 a partir de dados policiais." Epidemiologia e Serviços de Saúde 20.2 (2011): 151-159. Cerqueira, Daniel Ricardo de Castro. "Custo de bem-estar social dos homicídios relacionados ao proibicionismo das drogas no Brasil (Publicação preliminar)." (2023). de Souza, Monica Gomes Teixeira Campello, et al. "AS CAUSAS DOS HOMICÍDIOS EM PERNAMBUCO-CONTRASTANDO A NARRATIVA OFICIAL E A EXPERIÊNCIA DA POPULAÇÃO." Educamazônia-Educação, Sociedade e Meio Ambiente 24.1, jan-jun (2020): 314-345. dos Santos, Kélbila Mayara Borges, and Jeferson dos Reis Pessoa Junior. "ANÁLISE DOS HOMICÍDIOS NO ANO DE 2014 NA REGIÃO METROPOLITANA DE CUIABÁ-MT." TCC-Direito (2018). Ferreri, Marcelo de Almeida, and Manoel Carlos Cavalcanti Mendonça Filho. "Contradições do cotidiano nos homicídios por motivo fútil no Baixo São Francisco: pistas para pensar a interiorização da violência." Revista Polis e Psique 4.1 (2014): 54-54. Gawryzewski VP, Kahn T, Mello Jorge MHP. Informações sobre homicídios e sua integração com o setor saúde e segurança pública. Revista de Saúde Pública 2005; 39(4):627-633. Lima, Renato Sérgio de. "Conflitos sociais e criminalidade urbana: uma análise dos homicídios cometidos no município de Säo Paulo." (2000): 112-112. Lino, Denis, et al. "Psicopatia e Crime: São Todos os Homicidas Psicopatas?." Avaliação Psicológica 21.2 (2022): 187-196. Manso, Bruno Paes. Crescimento e queda dos homicídios em SP entre 1960 e 2010. Uma análise dos mecanismos da escolha homicida e das carreiras no crime. Diss. Universidade de São Paulo, 2012. Mingardi, Guaracy. "A Investigação de homicídios-construção de um modelo." (2006). Pereira, Guêdijany Henrique, et al. "CARACTERIZAÇÃO DAS VÍTIMAS DE HOMICÍDIOS DE UMA CIDADE DO NORDESTE DO BRASIL." Revista Cereus 7.1 (2015): 03-15. Ratton, José Luiz, et al. "Configurações de homicídios em Recife: um estudo de caso." Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública 6 (2011): 73-90. Sant'Anna, Ana, Denise Aerts, and Marta Júlia Lopes. "Homicídios entre adolescentes no Sul do Brasil: situações de vulnerabilidade segundo seus familiares." Cadernos de Saúde Pública 21 (2005): 120-129. Sapori, Luís Flávio. "Mercado das drogas ilícitas e homicídios no Brasil: um estudo comparativo das cidades de Belo Horizonte (MG) e Maceió (AL)." Dados 63 (2020): e20180191. Simão, Frederico Fernandes, and Luiz Carlos Colla Filho. "Homicídios e tráfico de drogas em Santa Catarina: análise de dados e considerações." Revista Ordem Pública 10.1 (2018): 115-136. Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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Indicadores de violência contra a mulher pioram, na contramão dos demais

Sociólogo Tulio Kahn elenca fatores que podem ter contribuído para o crescimento de crimes como o feminicídio

Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático Edição Scriptum O Anuário de Segurança Pública de 2023 constatou o crescimento de diversos crimes e indicadores de violência contra a mulher, não obstante a queda dos homicídios em geral e de diversos crimes patrimoniais no último quinquênio. Assim, por exemplo, com relação a 2021, os homicídios com mulheres como vítimas cresceram 1,2% e os feminicídios, 6,1%, na contramão das mortes violentas em geral, que caíram 2,4%. Isto fez com que os feminicídios representem hoje mais de um terço dos homicídios de mulheres no País. As tentativas de homicídio de mulheres aumentaram 9,3%, enquanto as tentativas de feminicídio cresceram quase 17% em um ano. Ainda neste contexto, a lesão corporal dolosa praticada em contexto doméstico variou 2,9% para cima, o que explica em parte o crescimento correlato de 13,7% das medidas protetivas de urgência (MPU) concedidas pela Justiça entre 2021 e 2022. Outro indicador do fenômeno é o número de chamados ao sistema 190 da Polícia Militar, que aponta um crescimento de 8,7% nos casos de violência doméstica. Para completar o quadro, as ameaças às mulheres subiram 7,2% em 2022, as perseguições passaram de 31 mil para 54 mil casos e os registros de violência psicológica contra mulheres subiram de 11 mil para cerca de 24 mil casos. Uma primeira observação é que este resultado deve refletir, em parte, o crescimento do próprio fenômeno e, em parte, o aumento da notificação pelas vítimas ou ainda o uso de novas classificações pelo sistema de justiça criminal. É nitidamente o caso das perseguições e violência psicológica, com a nova redação da Lei 14.132/2021. O mesmo, provavelmente, se aplica aos casos de assédio sexual e importunação sexual, que cresceram respectivamente 49,7% e 37% de 2021 para 2022. Existe um aprendizado mais ou menos lento dos operadores do sistema de justiça criminal, que aos poucos vão conhecendo e aplicando os novos esquemas de classificação, como aconteceu com o feminicídio, tipificado em 2015, que aos poucos vem substituindo o uso de homicídio contra mulheres. Este aprendizado explica porque no Distrito Federal 59,4% das mortes de mulheres sejam classificados como feminicídio, em contraste com apenas 9,1% dos casos em Roraima. Crimes são fenômenos sociais relativamente estáveis e inerciais. Mudanças bruscas como as vistas são usualmente resultado de alterações em definições jurídicas, sistemas de registro e contabilização e do processo social de produção dos dados criminais. A segunda nota é que muito se falou durante a epidemia da Covid-19 sobre o impacto do isolamento social na violência contra mulher, em razão da convivência forçada com seus parceiros no âmbito doméstico ou da piora da saúde mental. Há alguma evidência também do aumento do consumo de álcool durante a pandemia, fator tradicionalmente ligado à violência (Garcia, 2020). A expectativa, assim, é de que os indicadores de violência contra a mulher caíssem em 2022, na comparação com 2021, ano de pandemia, e não o contrário. Por que os indicadores pioraram então? Bueno e colegas (Bueno, 2023) levantam como hipóteses explicativas para o piora o desfinanciamento das políticas de proteção à mulher na gestão passada, a piora nos serviços de acolhimento e proteção às mulheres, o crescimento dos crimes de ódio e do conservadorismo na política brasileira e finalmente, uma reação masculina aos avanços da participação feminina na sociedade. Tão intrigante quanto o vertiginoso crescimento da violência contra a mulher pós-epidemia é a distribuição geográfica desta violência. Com os índices mais baixos vemos os Estados do Nordeste e do Sudeste. Centro Oeste, Sul e Norte, por sua vez, têm os índices mais elevados. O que está por traz desta distribuição? Grau de participação das mulheres na sociedade? Sensibilização com relação à notificação pelas vítimas? Diferentes práticas de registro do sistema de justiça criminal? Infelizmente não temos medidas de muitas destas dimensões teoricamente relevantes. Em geral, quanto maior a suspeita de que os agressores estavam alcoolizados no momento da agressão, maior o volume de novos portes de arma e maior o percentual de mães chefes de família sem fundamental completo, maior é o índice de violência contra a mulher no Estado. A dinâmica dos homicídios femininos é, de fato, diferente da dos feminicídios. Uma análise de perfil mostra que os feminicídios, comparados aos homicídios, são proporcionalmente mais cometidos dentro da residência, por conhecidos, com arma branca etc. Uma hipótese bastante plausível para o crescimento da violência contra as mulheres é a do crescimento das armas nas mãos dos CACs, que passaram de 13.378 para 783.385, uma variação de 5.755% entre 2005 e 2022. A questão do álcool, como discutimos, é mais complexa. Embora não existam dados recentes a respeito, a expectativa é de que o consumo de álcool voltaria a cair com o fim da epidemia. Mas esta relação precisa ser mais bem investigada, pois há estudos que apontam, ao contrário, que o consumo de álcool pode ter caído durante a epidemia e que agora estaríamos presenciando um retorno aos padrões de consumo anteriores, o que é coerente com um crescimento da violência contra a mulher observado no Brasil (Bollen, 2022; Carbia, 2022; Mangot-Sala, 2022). As outras variáveis socioeconômicas – tais como taxa de analfabetismo, renda per capita ou percentual de mães chefes de família sem o fundamental – são do tipo que se movem lentamente e não consta que tenham sofrido grandes alterações nos últimos anos. O mesmo, aliás, se aplica a variáveis como “cultura machista” e outros padrões de comportamento, que se movem devagar. São assim menos aptas a explicar as mudanças bruscas nos indicadores de violência contra a mulher do que variáveis criminógenas, como consumo de álcool e armas em circulação, afetadas pela pandemia e pela nova legislação. Em resumo, adicionalmente aos fatores elencados por Bueno et all., acreditamos que alterações na notificação por parte das vítimas, aprendizado no uso de novos tipos jurídicos e mudanças na circulação de armas, entre outras variáveis, podem explicar o crescimento observado nos indicadores de violência contra a mulher, em contraste com a tendência de queda das mortes violentas. Bibliografia BOLLEN, Zoé et al. Longitudinal assessment of alcohol consumption throughout the first COVID-19 lockdown: contribution of age and pre-pandemic drinking patterns. European Addiction Research, v. 28, n. 1, p. 48-55, 2022. Bueno, Samira; Martins, Juliana; Lagreca, Amanda; Sobral, Isabela; Barros, Betina e Brandão, Juliana. O crescimento de todas as formas de violência contra a mulher em 2022. Anuário de Segurança Pública de 2023, Fórum Brasileiro de Segurança Pública. CARBIA, Carina et al. Associations between mental health, alcohol consumption and drinking motives during COVID-19 second lockdown in Ireland. Alcohol and Alcoholism, v. 57, n. 2, p. 211-218, 2022. Cerqueira, Kahn, Bueno e Lins. Armas de Fogo Homicídios no Brasil. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Garcia, L. P., & Sanchez, Z. M.. (2020). Consumo de álcool durante a pandemia da COVID-19: uma reflexão necessária para o enfrentamento da situação. Cadernos De Saúde Pública, 36(10), e00124520. https://doi.org/10.1590/0102-311X00124520 MANGOT-SALA, Lluís et al. The impact of the COVID lockdown on alcohol consumption in the Netherlands. The role of living arrangements and social isolation. Drug and alcohol dependence, v. 233, p. 109349, 2022. Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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