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Criminalidade e desastres naturais: dados criminais de maio no RS
É provável que a queda generalizada da criminalidade em maio seja temporária e que os índices voltem aos patamares anteriores em pouco tempo, escreve Tulio Kahn
Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
A Secretaria de Segurança do Rio Grande do Sul divulgou os dados criminais relativos a maio de 2024, que captam as tendências criminais no Estado durante o período das inundações, que afetaram 88% dos 497 municípios, desde o final de abril.
Havia grande expectativa sobre estes números, uma vez que as notícias indicavam um crescimento dos furtos a residências e estabelecimentos comerciais e dos abusos sexuais nos abrigos emergenciais, entre outros delitos. A literatura a respeito dos efeitos dos desastres naturais sobre a criminalidade, embora não conclusiva, também sugeria majoritariamente um crescimento de algumas modalidades de crime, em curto e longo prazo, tanto nas cidades diretamente afetadas quanto nas áreas vizinhas, via migração (Varano et al., 2010).
Pelo menos no que se refere aos delitos monitorados e no curto prazo, o que vimos foi uma queda generalizada da criminalidade em maio, quando comparamos com a média dos quatro primeiros meses do ano.
A tabela abaixo compara maio com a média anterior para os 11 indicadores monitorados pela Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, tanto para as cidades afetadas diretamente pelas inundações (337) quanto para as não afetadas (160). A relação das cidades afetadas foi divulgada pela Defesa Civil do Estado (posteriormente, mais quatro cidades foram acrescentadas na lista das afetadas, mas os resultados gerais não devem ser diferentes).
Crimes do RS
Janeiro a maio de 2024
Municípios afetados e não afetados pela calamidade
Os desastres naturais são também “experimentos naturais”, situações excepcionais onde podemos testar uma série de hipóteses, uma vez que conseguimos encontrar um contrafactual adequado (cidades não afetadas) para comparar com um grupo de controle (cidades afetadas), considerando que a seleção entre os grupos foi aleatória. Comparando as tendências criminais das cidades afetadas e não afetadas, podemos lançar alguma luz sobre as explicações que fazem mais sentido para explicar a queda. Com exceção dos latrocínios – cuja quantidade absoluta é pequena e sujeita a flutuações – e do tráfico de entorpecentes nas cidades não afetadas, o que vemos é uma queda generalizada e intensa nos indicadores criminais em maio, comparado à média dos meses antecedentes. A literatura, especialistas, os jornais e autoridades governamentais estavam equivocados, então? Não necessariamente. A literatura traz casos em que a criminalidade caiu após desastres naturais, como foi o caso do Chile após os terremotos em 2010, de modo que o caso do Rio Grande do Sul não é excepcional. Alguns fatores podem explicar o fenômeno: aumento da solidariedade na população e impossibilidade de registrar as ocorrências na polícia. Mas acima de tudo uma forte mudança na rotina diária, como presenciamos durante a Covid, quando os crimes patrimoniais também despencaram no País. Para que um crime ocorra, vítima e autores precisam se encontrar num mesmo espaço e tempo, na ausência de guardiões. As inundações praticamente impediram a circulação de pessoas e bens, limitando consequentemente as oportunidades criminais. A hipótese da subnotificação perde força quando observamos que as quedas ocorreram tanto nos municípios afetados quanto nos não afetados. Não apenas não houve “migração” de crimes como em alguns casos estes caíram mais intensamente nos municípios não afetados, como nos furtos e roubos. O mesmo pode se dizer da hipótese da mudança de rotina e das oportunidades. Exceto se a calamidade foi tamanha que afetou a capacidade da polícia de registrar crimes em todo lugar e afetou a rotina cotidiana, mesmo nas cidades que não estavam alagadas, contaminado de alguma forma a rotina destas cidades. Essas hipóteses não podem ser descartadas, mas na falta de evidências de que isso tenha ocorrido, ganha força a hipótese da “solidariedade”, segundo a qual criminosos, sensibilizados pela tragédia, teriam menores incentivos à execução de crimes... Confesso que pessoalmente não acredito muito nesta conjectura, mas a comparação entre os grupos de municípios reforça esta linha de raciocínio, uma vez que a queda foi generalizada. De fato, sociedade e governos se uniram no apoio ao Rio Grande do Sul, contribuindo com recursos financeiros, alimentos, roupas, remédios, envio de tropas e equipamentos de salvamento, numa manifestação de solidariedade poucas vezes vista. Este apoio deve ter contribuído para aliviar necessidades imediatas e eventualmente a pressão para o cometimento de crimes oportunistas ou de necessidade. Mas é plausível supor que estes recursos foram concentrados nas áreas afetadas, de modo que não explica a queda criminal nos demais municípios. É preciso observar que os dados não permitem desagregar o que aconteceu especificamente com os arrombamentos e saques, que estão somados na grande categoria “furtos”. É possível então que alguns tipos de furtos tenham crescido, não obstante a queda geral na categoria. Não existem dados para monitorar os crimes sexuais, de que tivemos notícias episódicas pelos meios de comunicação. Em suma, estamos observando apenas alguns indicadores criminais e de forma agregada. Seria necessário um detalhamento das modalidades para verificar o impacto sobre situações específicas, como os furtos em residências e as importunações sexuais. Finalmente, estamos observando tendências de curtíssimo prazo enquanto a literatura sugere que muitos dos efeitos serão observados apenas em longo prazo, quando se acirrarão os fatores sociais e econômicos tipicamente associados ao crime: menos empregos, queda no rendimento escolar, queda na arrecadação de impostos e, portanto menos investimentos nas polícias, aumento dos problemas mentais, aumento da pobreza e desorganização social. (Waddell et al., 2021). Vimos com alívio a queda generalizada da criminalidade no RS em maio, mas é provável que esta queda seja temporária e que os índices voltem aos patamares anteriores em pouco tempo, como ocorreu no pós Covid. Lidar com estes efeitos requer uma abordagem abrangente que inclua respostas imediatas da aplicação da lei e suporte social e econômico de longo prazo para mitigar os efeitos adversos dos desastres naturais sobre o crime e a violência. Referências Aguirre, B. E., & Lane, D. (2019). [Fraud in disaster: Rethinking the phases](https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2212420919305746). Cutter, S., Barnes, L., Berry, M., Burton, C., Evans, E., Tate, E., & Webb, J. J. (2008). [A place-based model for understanding community resilience to natural disasters](https://www.semanticscholar.org/paper/011e91fb1fb77f6cd265dd8746e83ba6f1ef02b9). Nivette, A. E., Zahnow, R., Pérez Aguilar, R. A., Ahven, A., Amram, S., Ariel, B., & Aguilar, M. J. (2021). [A global analysis of the impact of COVID-19 stay-at-home restrictions on crime](https://www.nature.com/articles/s41562-021-01139-z.pdf). Varano, S. P., Schafer, J. A., Cancino, J. M., Decker, S. H., & Greene, J. R. (2010). [A tale of three cities: Crime and displacement after Hurricane Katrina](https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S004723520900141X). Waddell, S. L., Jayaweera, D., Mirsaeidi, M., Beier, J., & Kumar, N. (2021). [Perspectives on the Health Effects of Hurricanes: A Review and Challenges](https://www.semanticscholar.org/paper/ebc00dbefbc5db4a64b360d3213890587424d296). Card link Another linkCancelamento de contratos, o bode na sala dos planos de saúde?
Não sou adepto de teorias conspiratórias, mas desconfio muito desses movimentos sincronizados, com tempos e movimentos controlados, escreve Januario Montone
Januario Montone, gestor de saúde pública e colaborador do Espaço Democrático Edição Scriptum Indignação da opinião pública com os cancelamentos de contratos de planos de saúde, por decisão unilateral das operadoras, com forte repercussão na mídia profissional e nas redes sociais. Um conjunto de operadoras, numa ação que até pareceu orquestrada, começou a cancelar contratos da modalidade “coletivos”, alegando novas estratégias empresariais. Curiosamente, os cancelamentos atingiram contratos de pessoas idosas, em tratamentos dispendiosos ou com necessidades especiais. Algumas fontes falam em 30 mil contratos. Nada se ouve do Ministério da Saúde ou da ANS, mas a Câmara dos Deputados, com o deputado Arthur Lira à frente, convoca as operadoras, acena com uma CPI e exige um recuo. Elas prontamente se comprometem a suspender novos cancelamentos e a rever parte dos que já haviam sido feitos. Em troca, recebem a garantia de que o Projeto de Lei nº 7.419/2006 será votado até o final deste ano e que a Câmara está disposta a atender algumas das reinvindicações do mercado. A maior delas, a permissão de comercialização de “planos segmentados”, nova versão dos famigerados “planos populares” que o mercado tentou aprovar em 2016. Ou seja, planos que vão garantir apenas coberturas parciais, excluindo o tratamento de determinadas doenças, limitando os tipos de cirurgia, os dias de internação, mais ou menos como acontecia antes da regulamentação. Daí o título deste artigo. Como na fábula chinesa em que o sujeito não aguenta mais a confusão em sua casa e o sábio da aldeia recomenda que traga o bode para morar com ele, a mulher, seis filhos, o cunhado e a sogra. Quando recebe nova reclamação de que as coisas pioraram, ele sugere que o bode seja colocado para fora e tudo se resolve. Não sou adepto de teorias conspiratórias, mas desconfio muito desses movimentos sincronizados, com tempos e movimentos controlados, e preparados para criar uma narrativa de que o melhor para todo mundo é poder vender planos baratos, com cobertura limitada, criando um novo modelo de enganação para substituir os “planos falsos coletivos”, verdadeiros vilões dessa história, em troca de proibir os cancelamentos. Quando a lei nº 9.656/98 proibiu o rompimento unilateral, ou seja, o cancelamento de planos de saúde individuais, que também passaram a ter seus reajustes controlados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a reação do mercado foi deixar de oferecer esse produto. Num primeiro momento, concentraram-se nos planos coletivos empresariais e os por adesão, que eram negociados com associações e sindicatos para seus associados. A regulamentação desses modelos é mais indireta: (a) por se tratar de negociação entre empresas ou entidades; (b) envolver um grande números de vidas; (c) não haver período de carência, nem para doença ou lesão pré-existente; (d) não haver reajuste por faixa etária; (e) serem disputados pelas operadoras; e (f) haver possibilidade de negociação de fatores moderadores de uso gerenciados pela empresa e de compartilhamento de risco. Depois, o mercado reagiu em duas frentes. Com o crescimento das Administradoras de Benefícios que funcionam como contratantes de planos coletivos por adesão e o aparecimento dos “falsos coletivos empresariais” viabilizados pela pejotização do mercado de trabalho. Surge o “plano coletivo empresarial de 3 vidas”. Basta ter um CNPJ e você contrata um plano empresarial que tem todas as características de um plano individual e familiar, como carências, inclusive para doença e lesão pré-existente e reajustes por faixa etária. Só não tem as garantias do individual: reajuste controlado pela ANS (6,39% para este ano) e proibição do cancelamento pela operadora, exceto por fraude ou inadimplência. Corretores se especializaram em oferecer a abertura de “pejotas” para contratação de planos. Os planos desse segmento do mercado substituíram os planos individuais na maioria das operadoras e formaram um imenso contingente de consumidores subprotegidos: não têm a proteção da capacidade de negociação dos verdadeiros planos coletivos, nem a proteção que a lei confere aos planos individuais. Os problemas do setor são inúmeros e sua sustentabilidade está claramente em cheque, mas ao menos três barreiras estratégicas impedem que uma solução verdadeira avance: (1) a dificuldade das operadoras de aceitar que são empresas de saúde; (2) a ausência de poder regulatório da ANS sobre os hospitais e outros prestadores de serviço e (3) a ausência de liderança estratégica do Ministério da Saúde para integração dos setores público e privado. Vale lembrar que a regulamentação dos planos de saúde só aconteceu por uma intensa mobilização da sociedade civil contra os abusos do período selvagem deste mercado. Será que caminhamos para uma volta ao passado? Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
Card link Another linkCriatividade, destruição criativa e inteligência artificial
Para Luiz Alberto Machado, a IA repetirá o mesmo fenômeno ocorrido nas revoluções tecnológicas anteriores, com ajustes e avanços para toda a sociedade
Luiz Alberto Machado, economista e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Com a disseminação das diversas ramificações da inteligência artificial e suas inúmeras aplicações, ressurge a preocupação com a sobrevivência dos empregos diante da eminente ameaça de desaparecimento de algumas ocupações.
O tema não é novo e ganhou destaque sempre que ocorreu o surgimento de inovações que tiveram forte repercussão na atividade produtiva.
No presente artigo vou me referir a apenas alguns aspectos deste tema, ousando deixar explícita minha opinião no final.
Entendendo a inovação como um produto ou serviço resultante da ação criadora do homem, é possível identificar nomes consagrados que se dedicaram ao assunto.
No livro Economia + Criatividade = Economia Criativa (Scriptum Editorial, 2024), cuja segunda edição foi recém lançada pelo Espaço Democrático, os autores enfatizam dois aspectos da relação entre criatividade e inovação. A primeira delas diz respeito à precedência da primeira em relação à segunda. Essa anterioridade da criatividade à inovação não passou despercebida pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi. Em Gestão qualificada: a conexão entre felicidade e negócio (Bookman, 2004, p. 148), observa:
Na verdade, a criatividade é uma fonte interminável de inovação – sempre surge uma maneira melhor de fazer algo tradicional. É igualmente um processo muito democrático: não é preciso ser abastado, rico, bem relacionado ou nem mesmo bem educado para destacar-se com base numa boa ideia. Seja com uma franquia de pizza ou em uma companhia de biotecnologia, o potencial de crescimento está sempre presente. Construir uma visão de excelência é uma possibilidade sempre aberta a qualquer um que pretenda fazer bons negócios.
A segunda refere-se às formas de transformar uma ideia criativa num negócio concreto, seja ele um produto, um serviço ou um processo criativo. Para os autores, embora existam incontáveis formas, pode-se dizer que duas são básicas e resumem bem as possibilidades. Uma delas seria a inovação; a outra, a adaptação. A diferença entre as duas não é difícil de ser entendida. Transformar uma ideia criativa num produto ou processo inovador significa criar algo totalmente diferente do que já existe, numa verdadeira mudança de paradigma, de acordo com o livro clássico de Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (Perspectiva, 1982). Apesar de difícil de ocorrer, é algo que tem grande impacto mercadológico e que costuma provocar um grande alvoroço no segmento de atividade do referido processo ou produto. Os pesquisadores contemporâneos costumam chamar as mudanças radicais que caracterizam as inovações de disruptivas. Entre eles, merece especial ênfase o nome de Clayton Christensen, autor de O dilema da inovação (Makron Books, 2001), considerado, no ano de sua publicação, um dos mais importantes livros do segmento de negócios.
Transformar uma ideia criativa numa adaptação, por sua vez, significa incorporar algum tipo de aperfeiçoamento a um produto ou processo já existente, diferenciando-o da concorrência, tornando-o mais atrativo para o consumidor e garantindo, dessa forma, a sua fidelização. Seria uma transformação realizada por meio de mudanças incrementais, aquilo que os japoneses chamam de kaizen. Para quem não sabe, foi exatamente assim que o Japão conseguiu se transformar numa das maiores potências industriais do mundo, a ponto de pôr em risco a fantástica supremacia americana. O “milagre” japonês, conseguido apenas três décadas depois de o país sair arrasado da Segunda Guerra, não se deu por meio de um salto, através do qual o país dormiu num estágio atrasado e, de repente, acordou no dia seguinte super desenvolvido. A transformação do Japão em um dos mais produtivos países do mundo foi resultado de amplo processo de mudanças, que teve, como um de seus principais ingredientes, a conscientização de cada habitante – estudante, trabalhador, executivo ou empresário – para a necessidade de fazer melhor, a cada dia, a tarefa de sua responsabilidade.
Muito antes de Clayton Christensen, porém, outro nome tornou-se referência ao examinar a importância da inovação e do empreendedorismo, não apenas como fatores de obtenção de vantagem competitiva, mas como forças determinantes para o desenvolvimento e, por extensão, para a própria sobrevivência do capitalismo. Seu nome: Joseph Schumpeter.
Em O essencial de Joseph Schumpeter, Russel S. Sobel e Jason Clemens observam (Faro Editorial, 2021, p. 26):
Para Joseph Schumpeter, o desenvolvimento econômico é o resultado da inovação realizada pelos empreendedores que descobrem combinações novas e mais valiosas de recursos. Essa busca é incentivada e guiada pelo sistema de lucros e prejuízos. Além de satisfazer melhor os desejos dos consumidores a um custo menor, os empreendedores também os ajudam a descobrir novos desejos e preferências. Mas esse processo é disruptivo. Novos bens e serviços entram no mercado e competem com os existentes, às vezes, fazendo desaparecer a velha forma de fazer as coisas.
Prosseguem Sobel e Clemens (2021, p. 26):
Inovações como o automóvel e o avião foram mais do que simplesmente novas combinações de recursos para satisfazer desejos existentes dos consumidores; foram saltos em direção ao progresso econômico. Tais saltos são a chave do desenvolvimento econômico, mas também ameaçam indústrias existentes, como milhares de negócios e seus trabalhadores no ramo de charretes logo descobriram − e esse processo pelo qual o empreendedorismo [e a inovação] ameaça produtores existentes, e as consequências dessa ameaça constituem-se na destruição criativa.
Para Schumpeter, a destruição criativa significa uma incessante tempestade essencial para entender o dinamismo do sistema capitalista. No seu livro mais conhecido, Capitalismo, socialismo e democracia, publicado em 1942, ele faz as seguintes colocações (Zahar, 1984, pp. 112-113):
O impulso fundamental que inicia e mantém o movimento da máquina capitalista decorre dos novos bens de consumo, dos novos métodos de produção ou transporte, dos novos mercados, das novas formas de organização industrial que a empresa capitalista cria [...] que incessantemente revoluciona a estrutura econômica a partir de dentro, incessantemente destruindo a velha, incessantemente criando uma nova. Esse processo de destruição criativa é o fato essencial acerca do capitalismo. É nisso que consiste o capitalismo e é aí que têm de viver todas as empresas capitalistas.
Escrevendo sobre o tema no final da primeira metade do século 20, é natural que Schumpeter tenha ilustrado seu argumento com exemplos anteriores a essa época. Efetivamente, em seus livros, ele utiliza o exemplo do automóvel e da iluminação elétrica que tiveram impacto brutal nos proprietários e trabalhadores − e suas famílias − da indústria de charretes, dos criadores de cavalos, dos cortadores de árvores que utilizavam a madeira para construir charretes, dos ferreiros que colocavam ferraduras nos cavalos, das selarias que produziam arreios e equipamentos, da indústria de velas e dos acendedores de lampiões responsáveis pela iluminação pública.
Trazendo o argumento para tempos mais recentes, verificamos outros exemplos de destruição criativa que significaram enorme progresso, por um lado, mas o desaparecimento − ou acentuada redução − de uma série de negócios, profissões e ocupações. Basta lembrar do que ocorreu com produtos e serviços que de uma hora para outra testemunharam mudanças abruptas como ocorreu com a indústria de filmes fotográficos dominada pela Kodak, com as locadoras de filmes dominada pela Blockbuster ou no segmento musical, em que os discos de vinil foram substituídos por fitas-cassete e CDs, e esses, por downloads de músicas e, hoje, por serviços populares de streaming.
Fazendo um pequeno esforço de memória, constataremos que as revoluções tecnológicas (ou revoluções industriais) tiveram o mesmo efeito: na primeira revolução industrial, iniciada na Inglaterra na segunda metade do século 18, simbolizada pela máquina a vapor; na segunda, que teve como símbolos a eletricidade e o uso do petróleo e de seus derivados, na passagem do século 19 para o século 20; na terceira, simbolizada pelo uso dos computadores de grande porte, em meados do século 20; e na quarta, simbolizada pela miniaturização dos computadores e pelo aparecimento da internet no final do século 20. Em todos esses casos, os impactos propiciados pelas novas formas de produção provocaram o temor do desemprego em massa, com terríveis consequências sociais.
Para muitos analistas, a Inteligência Artificial é um dos símbolos de uma nova revolução tecnológica, agora com efeitos mais devastadores. Seu argumento está relacionado às novas possibilidades criativas e inovadoras abertas pela maior eficiência gerada pela integração da inteligência artificial na indústria de softwares.
Nesse particular, merece especial atenção o rápido crescimento da popularidade de um ramo específico da inteligência artificial chamado de Inteligência Artificial Generativa (IAGen), que parece ter potencial ainda mais significativo no contexto que vem sendo explorado neste artigo, por oferecer novas formas de criar conteúdo, inovação e experiências únicas.
Sem sombra de dúvida, já é possível afirmar que a integração da Inteligência Artificial Generativa na economia criativa disponibiliza ferramentas poderosas para ampliar a capacidade criativa, explorar novas direções e agregar valor aos processos criativos. No entanto, é importante considerar questões éticas, como a autoria e a responsabilidade, ao usar algoritmos e softwares especializados para gerar esse conteúdo “criativo”.
Uma preocupação, certamente, está presente na cabeça de muita gente: será possível a IAGen substituir a criatividade humana em algum momento?
Em seu depoimento no livro Economia + Criatividade = Economia Criativa, Maurício Andrade de Paula, um dos autores, afirma que "a resposta não é simples, pois a comparação entre a Inteligência Artificial Generativa e a criatividade humana é complexa, uma vez que envolve diferentes aspectos da expressão criativa" (2024, p. 135).
Evidentemente, a preocupação envolvendo a substituição do homem pela máquina, com implicações óbvias na trabalhabilidade e empregabilidade1, persistirá ocupando a mente de muita gente.
Mauricio Andrade de Paula acredita que ainda não estamos diante dessa possibilidade (2024, p. 136):
Embora a IAGen venha fazendo avanços significativos na simulação da criatividade de forma geral e genérica, a criatividade humana continua a ser única em sua complexidade, profundidade emocional e capacidade de criar significado. Certamente, a colaboração entre humanos e sistemas de IAGen resultará em sinergias poderosas, aproveitando o melhor de ambas as abordagens para alcançar resultados criativos notáveis. Seguiremos acompanhando!
De minha parte, acredito que haverá a repetição do mesmo fenômeno ocorrido nas revoluções tecnológicas anteriores. Teremos uma fase de transição em que as preocupações assumirão grandes proporções, um verdadeiro rodamoinho que tomará conta de parcela significativa da sociedade. Passada essa fase, constataremos que houve evolução e não retrocesso. O padrão de vida médio será superior e as novas oportunidades abertas pela evolução tecnológica serão maiores do que as perdas daqueles que serão prejudicados no processo.
Em outras palavras, confio no vigor do capitalismo alimentado pela destruição criativa de Joseph Schumpeter.
Espero estar certo!
Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
Card link Another linkGovernar não é negar direitos para distribuir favores
Para Samuel Hanan, as maldades, a insensibilidade e a incapacidade de governar para todos bloqueiam a verdadeira cidadania e corroem o respeito e a dignidade humana
Samuel Hanan, ex-vice-governador do Amazonas, engenheiro especializado em economia e colaborador do Espaço Democrático Edição Scriptum Ao se referir a governos, o economista e escritor norte-americano Harry Browne (1917/1986) disse que o governo é bom em uma coisa. “Ele sabe como quebrar as suas pernas, apenas para depois lhe dar uma muleta e dizer: se não fosse pelo governo você não seria capaz de andar”. Esse ponto de vista pode parecer raivoso ou exagerado, porém nos faz pensar e analisar a questão sob a ótica do Brasil. Observando o resultado do governo brasileiro nos últimos 34 anos – período em que o povo elegeu de forma democrática, por meio do voto direto, cinco presidentes da República de diferentes partidos políticos e matizes ideológicas (do PT, do PSBD, do extinto PRN e do PL) além de governadores, prefeitos e membros do Congresso Nacional –, constata-se que nenhum dos eleitos teve a preocupação de enviar projetos de lei visando justiça tributária, fundamental num país em que o Executivo arrecada muito em impostos pagos pela população e devolve pouquíssimo em bem-estar social a esses contribuintes. Não houve, nessas três décadas, leis que obrigassem o chefe do Poder Executivo a fazer a correção anual (pelo índice inflacionário acumulado nos 12 meses anteriores) das tabelas de Imposto de Renda, das aposentadorias e das pensões concedidas pelo Regime Geral da Previdência Social. Tributar a inflação significa penalizar duplamente o contribuinte, porque a não-correção retira renda efetiva, enquanto a inflação enfraquece o poder de compra. São milhões de brasileiros que dependem desse pagamento para viver e que perdem o poder de compra ano a ano em razão do crescimento da inflação. O Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), em matéria publicada pelo site Globo.com em janeiro de 2024, mostrou que a defasagem das tabelas do IR era da ordem de 149,56%. Agora, com a correção feita pelo Senado, essa defasagem caiu para 99,65%, percentual que se fosse corrigido elevaria a isenção do Imposto de Renda para pessoas com remuneração de até R$ 5.638,11/mês. Ou seja, alcançaria 95% da população brasileira. Esse sim seria o maior projeto social do Brasil – superior ao Bolsa-Família – e garantido por lei. Nesse período de pouco mais de três décadas, os governos brasileiros tampouco foram sensíveis à agonia diária de 122 milhões de cidadãos cuja renda mensal não ultrapassa um salário mínimo (hoje R$ 1.412,00/mês bruto e R$ 1.306,10/mês líquidos, equivalente apenas e tão somente US$ 126,00/mês) de modo a preservar e aumentar um pouco o valor de sua forma de sobrevivência. A falta de receita não pode ser usada como causa impeditiva porque nesse período a carga tributária aumentou 50% (passou de 22,5% para 33,5% do PIB). Os governos também tiveram tempo de sobra (mais de 30 anos) para elaborar soluções e se tivessem apresentado propostas legislativas para entrar em vigor em cinco, dez ou até 20 anos, hoje tudo já estaria resolvido. A situação perdura, mas uma nova oportunidade se abriu agora, com a reforma tributária a ser enviada ao Congresso Nacional ainda este ano e já amplamente debatida. Mas por que nada foi feito? Insensibilidade? Incompetência? Talvez nada disso. A resposta passa pelo pensamento de Harry Browne sobre o governo. O fato é que os governantes “quebraram as pernas” da imensa maioria da população ao não corrigirem as tabelas do IR, das aposentadorias e das pensões e ao não praticarem justo reajuste de salário-mínimo para garantir a esses cidadãos brasileiros maior poder de compra e para tornar um pouco mais leve aos ombros dos trabalhadores o peso dos aumentos da carga tributária e dos preços. Basta lembrar que após a promulgação da Constituição Federal de 1988, poderiam ter reduzido (ou até excluído) a incidência de impostos sobre os gêneros de primeira necessidade, de maior impacto sobre os mais pobres. No entanto, a opção foi outra: a de entregar “muletas” por meio de “benefícios sociais” como o Bolsa-Família, vale-gás, vale-dignidade menstrual e outros, que apenas mantêm os mais pobres sob dependência, sem dar solução definitiva ao problema. São medidas de caráter paliativo, que não resolvem o problema e escravizam a população, além de não possuírem garantia alguma – vez que dependem da decisão do governante de plantão – e que não são capazes de dar dignidade à vida das pessoas. Nesse caso, é bom lembrar o que escreveu o filósofo norte-americano John Kenneth Galbraith (1908-2006): “Nada estabelece limites tão rígidos à liberdade de uma pessoa quanto a falta de dinheiro”. Os governos também falharam inapelavelmente na questão da redução das desigualdades regionais e sociais. A questão é igualmente grave, como apontam os dados oficiais. A renda anual per capita dos habitantes dos 16 Estados das regiões Norte e Nordeste até hoje é 36% inferior à média nacional. Temos, portanto, dois Brasis dentro de um só território. Uma das consequências diretas disso é que no Norte e Nordeste o número de beneficiários do Bolsa-Família ultrapassa o número de trabalhadores com carteira assinada em mais de 4 milhões de pessoas. Naqueles Estados, o número de brasileiros que têm emprego ou exercem outras atividades econômicas com carteira de trabalho assinada é também muito díspar (para menos) em relação aos moradores de outros Estados. A grave anomalia é ainda evidenciada pela discrepância do posicionamento do Brasil no ranking das maiores economias do mundo (9º lugar) e no ranking per capita/ano (69ª posição) o que evidencia a má distribuição de renda. Tudo a demonstrar que as riquezas produzidas pelo País estão longe de refletir na qualidade de vida da sua população. A situação está a exigir maior transparência e garantia da dignidade dos cidadãos, assegurando-lhes mais direitos e menos favores oficiais. Um exemplo bastante singelo comprova essa assertiva. Basta perguntar a um pai de família o que lhe dá mais satisfação: chegar em casa com uma bola ou uma boneca de presente para seu filho ou filha e dizer “papai comprou com a economia do salário” ou afirmar que “papai ganhou do prefeito/governador/deputado”? Qual das situações o fará se sentir mais digno? As maldades, a insensibilidade e a incapacidade de governar para todos bloqueiam a verdadeira cidadania e corroem o respeito e a dignidade humana. As “muletas” podem trazer algum alívio momentâneo, porém simbolizam fracasso e falta de perspectiva. Tudo o que o brasileiro não merece. Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
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