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Guanabara, o efêmero Estado criado por JK e extinto pela ditadura militar
Há 50 anos o Brasil assistiu à unificação de dois Estados; dois governadores entregaram o cargo a um
Ricardo Westin, da Agência Senado
Edição Scriptum
Há 50 anos, em 15 de março de 1975, o Brasil assistiu a uma troca de poder até hoje única em sua história política, com dois governadores simultaneamente entregando os respectivos cargos a um mesmo governador eleito.
Na cerimônia, o mandatário do Rio de Janeiro, Raimundo Padilha (Arena), e o da Guanabara, Chagas Freitas (MDB), transmitiram o poder a Faria Lima (Arena).
Com a posse, os Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara foram unificados e Faria Lima se tornou o governador do novo Estado do Rio de Janeiro.
Foi o fim da efêmera Guanabara, estado criado no governo Juscelino Kubitschek apenas 15 anos antes e extinto pela ditadura militar. Na prática, tratava-se de uma cidade-estado, pois era composta apenas da cidade do Rio de Janeiro.
A Guanabara surgiu em 1960, quando Brasília foi inaugurada e a cidade do Rio deixou de ser o Distrito Federal. Em vez de ser integrada ao Estado do Rio de Janeiro, no qual estava encravada, a cidade se transformou num estado à parte.
Ocupando cerca de 1.350 quilômetros quadrados, a Guanabara era o menor Estado do Brasil. Como comparação, o atual Distrito Federal tem quatro vezes essa área.
Documentos da época guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que a fusão proposta pela ditadura foi criticada por praticamente toda a bancada de ambos os Estados. Dos seis senadores cariocas (ou guanabarinos) e fluminenses, cinco combateram até o fim o projeto de lei apresentado ao Congresso Nacional pelo general Ernesto Geisel, o quarto presidente do regime militar.
— É de perfeita irracionalidade, de absoluta falta de fundamento lógico, de flagrante inoportunidade a tese que propõe a fusão dos Estados — avaliou Danton Jobim (MDB-GB), o senador mais aguerrido na luta contra o desaparecimento da cidade-estado.
— A fusão, no meu entender, significaria o colapso da Guanabara e o aniquilamento a médio prazo da província fluminense — prognosticou o senador Benjamin Farah (MDB-GB).
— É preciso mostrar a apreensão de cariocas e fluminenses quando, à nossa revelia, decidem os destinos de nossos estados — afirmou o senador Amaral Peixoto (MDB-RJ).
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Entre os senadores dos dois Estados, o único a defender o fim da Guanabara foi Vasconcelos Torres (Arena-RJ), que afirmou:
— Acho até que a fusão já existe. Na fronteira dos dois Estados, em Vigário Geral, por exemplo, muita gente não sabe se está no Estado do Rio de Janeiro ou na Guanabara. Falta apenas a fusão ser consubstanciada na ordem administrativa.
O MDB, partido da oposição, não tinha força suficiente no Congresso Nacional para deter o rolo compressor do governo, que contava com o apoio da Arena, partido da ditadura. Por essa razão, o projeto de lei prevendo a incorporação da Guanabara ao Rio de Janeiro foi aprovado sem dificuldade.
Diante das críticas do MDB, o senador governista Virgílio Távora (Arena-CE) recomendou aos colegas oposicionistas que seguissem as regras do jogo legislativo e tentassem mudar o projeto do governo por meio de emendas. O senador Amaral Peixoto respondeu:
— Vamos apresentar as emendas, mas confesso a Vossa Excelência que estamos com muito receio do destino que terão, porque temos a experiência aqui no Congresso de que elas geralmente vão para a vala comum.
A proposta foi apresentada em 4 de junho de 1974, avalizada pelos senadores e deputados num piscar de olhos e assinada pelo presidente Geisel em 1º de julho.
Quando a lei foi posta em prática, em março de 1975, a capital do Estado do Rio de Janeiro mudou. A sede do governo fluminense deixou de ser Niterói, rebaixada a município comum, e passou a ser a cidade do Rio.
Os debates no Senado começaram meses antes da chegada do projeto de lei ao Congresso, assim que os jornais passaram a noticiar que a ditadura tinha planos de acabar com a Guanabara.
Os senadores da Arena apontaram motivos econômicos para a fusão. De acordo com eles, a indústria da Guanabara não tinha mais como se expandir em razão do pequeno território carioca. O problema se resolveria, então, acabando com a divisa entre os dois Estados.
Segundo a edição de 1963 da Enciclopédia Delta Júnior, muito popular na época, a Guanabara, mesmo sendo o menor Estado do Brasil, tinha o segundo maior parque industrial, atrás apenas do Estado de São Paulo.
As estatísticas oficiais do governo carioca mostravam que, em 1973, São Paulo respondeu por quase 50% da arrecadação nacional. A Guanabara, por perto de 25% — praticamente o mesmo valor de todos os demais estados juntos.
Os arenistas garantiram que também os fluminenses se beneficiariam da fusão. O argumento era que o Estado do Rio de Janeiro, considerado pobre por ter a economia baseada na agricultura, passaria a receber parte da riqueza produzida pela cidade do Rio.
— A pequena cidade-estado é uma cabeça sem corpo, assim como o Estado do Rio de Janeiro é um corpo sem cabeça — comparou o senador fluminense Vasconcelos Torres. — As duas economias reunidas representarão uma situação melhor para a Guanabara, para o Estado do Rio de Janeiro e para o Brasil. Se olharmos de ângulos estritamente pessoais e regionalistas, jamais poderemos encarar o Brasil no seu conjunto e a Guanabara continuará como uma espécie de Mônaco, com a geografia sendo fluminense e a história também sendo fluminense.
Na defesa da fusão, os porta-vozes da ditadura ainda recorreram a argumentos históricos. Eles lembraram que a cidade do Rio pertenceu à capitania do Rio de Janeiro nos tempos da Colônia e à província do Rio de Janeiro nos primórdios do Império.
Foi em 1834 que a cidade, por ser a capital imperial, foi separada e ganhou o status de Município Neutro (ou Município da Corte). Após a queda da Monarquia, trocou-se o título do Rio para o de Distrito Federal.
A fusão nada mais seria, portanto, que a volta a uma realidade que já existiu.
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Na visão dos senadores do MDB, todos os argumentos dos colegas da Arena eram balela. Eles entendiam que, por trás da fusão, a verdadeira intenção dos militares era enfraquecer o partido oposicionista.
Na época do projeto de lei, o único Estado que o MDB governava era justamente a Guanabara. Além disso, todos os senadores do pequeno Estado e a maioria dos deputados federais e estaduais pertenciam à oposição.
O senador carioca Danton Jobim lembrou que, quando a ditadura autorizou o MDB a chefiar a Guanabara, com Chagas Freitas, eleito indiretamente pelos deputados estaduais em 1971, muitos arenistas advertiram que se tratava de um tiro no pé. Segundo Jobim, não havia motivo para preocupação porque o governador emedebista jamais se atreveria a entrar em confronto com os generais:
— O MDB da Guanabara reconheceu desde logo que o Estado não poderia fugir à integração nos planos adotados pelo governo federal. Uma atitude diferente seria uma luta inglória e equivaleria fatalmente ao fracasso administrativo. Por mais oposicionista que seja o povo do nosso Estado, ele não perdoará jamais que um oposicionista no Poder Executivo, eleito para governar e administrar, cometa o erro e o crime de sacrificar a eficiência de sua gestão e condená-la à estagnação e à esterilidade apenas para ostentar seu radicalismo oposicionista.
De acordo com o senador fluminense Amaral Peixoto, o MDB também ia relativamente bem no Estado da Guanabara:
— No Estado do Rio, o número de deputados federais do MDB é quase igual ao da Arena. Na Guanabara, é muito grande. Esses dois Estados reunidos num só, em vez de mandarem 44 deputados para a Câmara, mandarão somente 31. Portanto, o desfalque da futura bancada do MDB vai ser muito grande com essa fusão. É o aspecto político que não posso deixar de mostrar.
O senador Nelson Carneiro (MDB-GB) resumiu:
— É o poder ditatorial agindo para que o MDB seja apenas um partido parlamentar, sem possibilidade de assumir as funções do Executivo [nos Estados]. Essa é a realidade a que não se pode fugir.
Para defender seu ponto de vista, os críticos da fusão também mergulharam na história. Eles lembraram que as Constituições de 1891, 1934 e 1946 determinaram com todas as letras que, uma vez transferida a capital brasileira para o centro do País, o velho Distrito Federal se transformaria num Estado. A única Carta que não tratou da questão foi a de 1937. A Constituição de 1946, aliás, estabeleceu que o novo Estado se chamaria Guanabara. O nome se deve à baía que o banha.
— Todas as Cartas constitucionais federais que tivemos desde 1891... — iniciou Danton Jobim, sendo logo interrompido.
— Citaria também todas as Cartas do Estado do Rio de Janeiro, porque fui constituinte fluminense — interveio o governista Vasconcelos Torres. — E nelas constava o seguinte dispositivo: efetivada a mudança da capital, o Estado do Rio de Janeiro reivindicará a área que até 1834 lhe pertencera.
Combatendo o argumento de que a cidade do Rio, no passado, fez parte da capitania e da província do Rio de Janeiro, Danton Jobim comparou:
— Seria então o caso de promover a fusão de São Paulo com o Paraná, que foi a comarca [paulista] de Curitiba até os meados do século passado? Ou devolver a comarca do Rio Negro [atual Amazonas] ao Grão-Pará?
Vasconcelos Torres ironizou:
— Vossa Excelência está se revelando um bom pesquisador.
Danton Jobim devolveu:
— Todas essas pesquisas me foram oferecidas por um grupo de pesquisadores, de professores de história cariocas que pertencem ao Movimento Libertador da Terra Carioca e estão profundamente comovidos com a iminência da fusão.
Ainda segundo os senadores do MDB, era falacioso o argumento de que a industrialização da Guanabara estava comprometida por causa do pequeno território. Danton Jobim novamente pediu a palavra:
— A área geográfica da Guanabara é realmente pequena, mas até há bem pouco tempo dois terços do seu território eram economicamente desaproveitados. Só muito recentemente começou-se a tratar da exploração desses territórios, atraindo para ali grandes indústrias. Particularmente no governo atual, do sr. Chagas Freitas, planejou-se com muito cuidado o desenvolvimento dessa região, a região oeste do Estado, onde poderíamos incluir Jacarepaguá. Os frutos obtidos são extraordinários, mas estamos muito longe ainda de cobrir toda essa área quanto ao seu aproveitamento.
Igualmente falacioso seria o argumento de que a fusão era uma medida imprescindível para eliminar ou minimizar a pobreza do Estado do Rio de Janeiro. A oposição disse que, para efetivamente ajudar o grande Estado vizinho a prosperar, a cidade do Rio de Janeiro precisaria manter-se separada e incentivando sua própria indústria.
Danton Jobim afirmou:
— Estamos encravados na velha província. Somos circundados não propriamente por vizinhos, mas por irmãos que se beneficiam da nossa prosperidade, assim como nos beneficiamos dessa proximidade geográfica. Somos o seu grande mercado consumidor. Somos a sua rede hospitalar na zona periférica da Guanabara. Grande parte dos jovens da Baixada [Fluminense] frequenta a nossa rede de ensino. Nossa presença numa fronteira sem barreiras incentiva-lhe o progresso, absorve-lhe o excesso de mão de obra, cria cidades novas e opulenta as velhas. O intercâmbio econômico se faz sem quaisquer obstáculos.
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Os senadores do MDB argumentaram que a Guanabara seria prejudicada financeiramente pela fusão. De acordo com eles, os tributos que a cidade-estado arrecadava, apesar de sua prosperidade econômica, não eram suficientes para fazer frente às obras de infraestrutura em curso e a situação ficaria ainda pior se ela fosse absorvida pelo Estado do Rio de Janeiro, já que seria forçada por lei a destinar ao vizinho uma boa parte de sua arrecadação.
Seguindo esse raciocínio, o senador carioca Benjamin Farah lembrou que, em 1972, a receita tributária do governo carioca fora de 3,2 bilhões de cruzeiros, sendo 1,8 bilhão de cruzeiros destinados ao pagamento dos funcionários públicos estaduais, e que a arrecadação do governo fluminense somara apenas 1,4 bilhão de cruzeiros, dos quais 900 milhões de cruzeiros destinados ao funcionalismo. Ele disse:
— Verificamos aí que, na hipótese da fusão, não haveria como promover a distribuição equitativa de recursos, uma vez que a Guanabara seria forçada a pulverizar sua receita no atendimento administrativo do interior fluminense. Se atualmente a receita carioca não atende ainda às suas necessidades de investimento, obrigando o Estado a recorrer a empréstimos externos, o que dizer então depois da unificação? A ideia é impraticável e inoportuna.
Farah tratou do ordenado do funcionalismo público:
— O da Guanabara ganha mais que o fluminense. A fusão obrigaria o estabelecimento de uma paridade, que certamente teria por base os níveis e padrões cariocas. Se a receita do Estado do Rio atualmente não tem condições de elevar o vencimento dos seus servidores, não o terá também depois da fusão. Teria que recorrer ao Tesouro da Guanabara, que seria forçado a desviar suas verbas para o pagamento dos servidores e não contaria com recursos para a execução de obras.
Os adversários da fusão também citaram as dificuldades técnicas que decorreriam da unificação administrativa e judiciária dos dois Estados.
O senador carioca Nelson Carneiro citou a unificação dos dois Tribunais de Justiça como problemática:
— Serão 53 desembargadores, dos quais 36 da Guanabara e 17 do estado do Rio. Não será um Tribunal de Justiça, mas uma “Assembleia Judiciária”, maior do que a Assembleia Legislativa de quase todos os Estados do País. Quem vive no foro vê a impossibilidade do funcionamento de um tribunal dessa extensão. E o que se fará, será com o sacrifício dos novos ou dos velhos desembargadores? Será com o desestímulo para os que iniciam a carreira ou para os que estão na carreira?
Embora não pertencesse a nenhum dos dois Estados e fosse filiado ao partido governista, o senador Luiz Cavalcante (Arena-AL) entrou no debate para apontar um possível inconveniente:
— Nessa anunciada fusão, o mais desfavorecido será o Estado do Rio de Janeiro. Naturalmente que a imensa metrópole carioca absorverá a quase totalidade das atenções do governador do Estado resultante. A pujante imprensa guanabarina não gritará decerto pelas necessidades de Magé, Cordeiro e Nova Friburgo [municípios fluminenses]. Continuará, isto sim, gritando pelos problemas de Copacabana, do Méier, de Madureira, do Grajaú e por aí afora. Será um Estado macrocéfalo, aleijado, com a cabeça imensamente desproporcional ao corpo.
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Os adversários do plano da ditadura mencionaram que os dois Estados tinham culturas diferentes e que as suas populações não desejavam a unificação.
O senador Danton Jobim lembrou que até o fim Império tanto os moradores da cidade do Rio quanto os da província do Rio de Janeiro eram chamados indistintamente de “fluminenses” (flumen significa “rio” em latim) e que isso mudou à medida que as respectivas particularidades foram se desenvolvendo:
— O termo carioca é antigo, mas somente obteve foros de cidadania e passou da linguagem popular para a erudita no período republicano, quando o Município Neutro se converteu em Distrito Federal. A comunidade carioca e a fluminense foram irmãs xifópagas que se separaram através de uma operação cirúrgica na primeira metade do século passado. Com o passar do tempo, cada uma dessas comunidades oriundas do mesmo tronco adquiriu fisionomia própria, peculiaridades, necessidades e interesses que já não cabem numa só juridicidade político-administrativa.
Os senadores do MDB sugeriram que, para verificar a adesão popular à fusão, o governo convocasse os eleitores cariocas e fluminenses para um plebiscito. Os generais, porém, recusaram-se a fazê-lo.
— Num país como o nosso, em que ainda não se baniu o sistema democrático representativo [parlamentar], as populações desses Estados e os seus legítimos governantes e representantes nas duas Casas do Parlamento e nas Assembleias Legislativas devem ter uma palavra a dar sobre o assunto — afirmou Danton Jobim.
— O problema da redivisão territorial do País nada tem a ver com a democracia — retrucou o senador José Lindoso (Arena-AM). — Este governo não é surdo a contribuições da oposição, mas quer crítica responsável. Se a redivisão territorial se impuser, ela será feita na base racional, e não sob o imperativo emocional deste ou daquele Estado; não no respeito de tradicionalismos anacrônicos e emperradores do desenvolvimento, mas dentro da perspectiva de acelerar este desenvolvimento e construir um país na linha da revolução [ditadura].
Não se sabe se, de fato, os fluminenses eram contrários à fusão. Os cariocas, sim, eram. Isso se deduz do fato de que foi apenas com a criação da Guanabara que os governantes e os eleitores da cidade passaram a gozar de verdadeira liberdade política.
Enquanto a cidade do Rio de Janeiro ostentou o status de Distrito Federal, seus prefeitos foram indicados pelos presidentes da República e aprovados pelo Senado e não passaram longos períodos no cargo. Além disso, parte das decisões dos vereadores cariocas precisava do crivo dos senadores.
— Foi a partir de sua autonomia administrativa e política que o povo carioca viu equacionados seus problemas mais vitais — discursou Danton Jobim. — Éramos antes pupilos privilegiados do governo federal, que nos custeava a Justiça, a política e os bombeiros. Nossos prefeitos nomeados cuidavam apenas de problemas edílicos. O governo federal nos presenteava esporadicamente com obras urbanas admiráveis e suntuosas. O sertão carioca [zona Oeste] permaneceu esquecido, o que hoje felizmente já não acontece. Quanto ao governo Chagas Freitas, justiça é reconhecer que enfrentou os problemas com visão de estadista, dando ênfase à Guanabara como Estado, e não como município.
Chegou-se a dizer que os maiores interessados na incorporação do estado da Guanabara ao Estado do Rio de Janeiro eram os industriais cariocas, uma vez que eles lucrariam mais se passassem a pagar os tributos cobrados pelo governo fluminense, provavelmente mais baixos que os recolhidos pelo governo carioca.
— O único lado mau da fusão é a interveniência esdrúxula da Federação das Indústrias do Estado da Guanabara — criticou o senador governista Vasconcelos Torres.
— Nisto estou de pleno acordo com Vossa Excelência — concordou o oposicionista Nelson Carneiro.
— Eles vêm polarizando os seus interesses relativamente à política tributária, à questão dos impostos ou algo que o valha. Vem essa federação, e isso é o que me contrista um pouco, com essas matérias pagas, a defender o interesse pessoal de alguns comerciantes e industriais que não estão olhando para o Brasil, e sim para a sua situação — continuou Vasconcelos Torres.
O senador fluminense Amaral Peixoto citou a inauguração da Ponte Rio-Niterói, realizada em 4 de março de 1974, exatos três meses antes de o governo remeter o projeto da fusão ao Congresso. A cerimônia foi conduzida pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, em seus últimos dias de governo. Em carro aberto, o ditador partiu do Rio, onde cumprimentou o governador da Guanabara, e chegou a Niterói, onde saudou o governador do Rio de Janeiro. Amaral Peixoto disse:
— Alguns dos argumentos que têm sido invocados para essa fusão são ridículos. Outros, de má-fé. Chega-se neste momento a falar na fusão por causa da ponte. É ideia antiga ligar através de um túnel no Canal da Mancha a França e o Reino Unido. Pergunto: será que estão cogitando de fazer a fusão dos dois velhos países? A Europa foi ligada à Ásia através de uma ponte sobre o Bósforo. Alguém cogitou da fusão? A ponte é uma grande obra, um grande melhoramento, mas não justifica a fusão.
Como última cartada, os senadores contrários à fusão dos Estados argumentaram que o projeto de lei contrariava frontalmente a Constituição, motivo pelo qual deveria ser logo rejeitado pelo Congresso Nacional. Danton Jobim afirmou:
— O que devemos lembrar neste momento é que a Constituição que deu ao País a revolução de 1964 inscreveu o princípio federativo como dogma político, não permitindo sequer que numa revisão constitucional apresentássemos qualquer emenda que ferisse o sistema federativo e o regime republicano. Mas o fato é que a Federação vem recebendo sérios golpes ultimamente, e um dos maiores é este da fusão sem consulta prévia às populações interessadas.
Os argumentos da oposição de nada adiantaram. A fusão foi aprovada pelo Congresso Nacional tal qual o general Geisel desejava.
Houve também a fusão das duas bancadas no Senado, o que fez com que inicialmente o novo Estado do Rio de Janeiro contasse com seis representantes. Foi apenas em 1983 que passou a ter os três senadores regulamentares.
A historiadora Marieta de Moraes Ferreira, que é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e estudiosa da fusão, avalia que não é verdadeiro o argumento de que a Guanabara foi extinta com o intuito prejudicar o MDB:
— O MDB da Guanabara, naquele momento, não fazia nenhuma oposição consistente ao governo federal, ao contrário do MDB de São Paulo, por exemplo. O emedebista Chagas Freitas, que foi o último governador da Guanabara, era conivente com a ditadura e fez declarações a respeito da fusão muito vagas e nada incisivas.
De acordo com ela, a unificação dos Estados produziu efeitos positivos em termos de desenvolvimento econômico, mas isso acabou sendo ofuscado pela forma como o regime militar a executou:
— O processo foi feito de forma autoritária, como um ato de força do governo, que não permitiu discussões aprofundadas nem ouviu as populações interessadas. A fusão nasceu com esse pecado original que acabou contaminando todo o processo.
A historiadora aponta que há muita gente que atribui as atuais mazelas políticas e sociais da capital e do Estado à fusão feita 50 anos atrás, mas avalia que essa também é uma interpretação equivocada:
— Defende-se até mesmo a “desfusão” como solução. Isso é uma bobagem. É preciso olhar a história com mais cuidado para identificar a raiz dos problemas. Um dos desafios atuais é a escassez de políticos verdadeiramente comprometidos com os problemas do Estado e da capital, e isso tem origem, na realidade, no golpe de 1964. A ditadura foi particularmente dura com os políticos da Guanabara. Entre os cassados, por exemplo, figuraram Leonel Brizola e Carlos Lacerda. Esse golpe contra a Guanabara barrou o surgimento de novos grandes líderes. Foi um profundo esvaziamento político, que permaneceu mesmo depois da fusão.
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O cientista político Christian Lynch, pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) — que já se chamou Universidade do Estado da Guanabara (UEG) — e organizador do livro Rio 2º Distrito Federal: Diagnóstico da Crise Estadual e Defesa da Federalização (Editora Jaguatirica), faz uma interpretação distinta. Segundo ele, a ditadura acabou com a Guanabara para que a cidade do Rio de Janeiro deixasse de ocupar o papel de capital paralela do Brasil que vinha ocupando até então.
Ele lembra que uma parte considerável da máquina estatal continuava baseada no Rio de Janeiro mesmo passados mais de dez anos da transferência para Brasília. O famigerado Ato Institucional nº 5 (AI-5), por exemplo, foi assinado pelo presidente Arthur da Costa e Silva no Palácio Laranjeiras. No Rio, os deputados e senadores davam entrevistas à imprensa nos Palácios Tiradentes e Monroe, respectivamente as antigas sedes da Câmara e do Senado. As embaixadas continuavam funcionando na Guanabara.
— A ditadura tinha uma visão de capital ainda mais burocrática e autoritária que a de Juscelino Kubitschek. A capital deveria estar no centro geográfico do País, e não no centro demográfico, porque a alta concentração populacional era vista como um perigo para os governantes em razão de possíveis protestos e sublevações populares. De fato, as grandes manifestações de rua contra a ditadura ocorreram em 1968, no Rio de Janeiro.
De acordo com Lynch, foi com o intuito de apagar a memória de capital do Rio de Janeiro e enfim consolidar Brasília que o general Geisel demoliu o Palácio Monroe e transferiu o Palácio Tiradentes para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e o Palácio Laranjeiras para o governo fluminense.
Além disso, segundo ele, os militares que chegaram ao poder com o golpe de 1964 haviam sido os rebeldes tenentistas da década de 1920 e na época da ditadura ainda tinham más recordações da Revolução Constitucionalista de 1932, em que o Estado de São Paulo tentou derrubar o governo de Getúlio Vargas e a ideologia política do tenentismo.
— Para esses militares, era importante criar um Estado forte que conseguisse fazer frente ao poderoso Estado de São Paulo. Esse Estado forte seria o novo Rio de Janeiro resultante da fusão. Enquanto São Paulo seria poderoso em razão das empresas privadas, o novo Rio de Janeiro seria forte em razão das empresas estatais nele instaladas pelo governo militar.
Na avaliação de Lynch, a fusão deixou um legado negativo para o novo Rio de Janeiro como um todo, entre outros motivos, porque não foi possível criar uma relação orgânica entre os políticos da capital e os do interior, que até hoje não conseguem dialogar e agir adequadamente para enfrentar os problemas do Estado.
— Isso fica claro quando se vê que muitos governadores, eleitos pelo interior, não gostam da capital e que muitos prefeitos da capital não conseguem se tornar governadores porque não são aceitos pelo interior — ele exemplifica.
Uma curiosa reminiscência do antigo Estado da Guanabara se vê ainda hoje. No futebol, o campeonato estadual do Rio de Janeiro mantém a Taça Rio e a Taça Guanabara, atualmente entregue ao time com melhor desempenho na primeira fase. Criada em 1965, a Taça Guanabara, como o nome indica, era originalmente destinada apenas aos times da cidade-estado da Guanabara.
Card link Another linkA 17ª Cúpula do BRICS será no Brasil
Economistas Luiz Alberto Machado e Paulo Galvão Jr. analisam o cenário internacional antes da reunião do Rio de Janeiro
Luiz Alberto Machado e Paulo Galvão Jr, economista e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Embora a maior parte das atenções da mídia esteja voltada para os preparativos da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP30, prevista para ocorrer entre os dias 10 e 21 de novembro de 2025, em Belém, no Pará, o Brasil sediará, antes disso, outro importante evento internacional. A 17ª Cúpula do BRICS será realizada nos dias 6 e 7 de julho de 2025, no Rio de Janeiro. O BRICS é um grupo econômico de países emergentes, inicialmente composto por Brasil, Rússia, Índia e China, e posteriormente, pela África do Sul. Nos últimos anos, o grupo expandiu-se para incluir novos membros, como Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos (EAU) e Irã, e, mais recentemente, a Indonésia.
É preciso revelar que a Arábia Saudita foi convidada a juntar-se ao grupo econômico em 2023, mas ainda não oficializou sua entrada como o 11º país membro do BRICS. A Arábia Saudita é o líder da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e o príncipe herdeiro, Mohammad bin Salman, poderá ampliar os seus investimentos e comércio exterior com os dez países membros do BRICS.
Já a Argentina foi convidada a ingressar no grupo durante a gestão do ex-presidente Alberto Fernández, na 15ª Cúpula do BRICS, em Johanesburgo, na África do Sul, entre 22 a 24 de agosto de 2023, mas, o presidente argentino Javier Milei não aderiu ao grupo em 22 de dezembro de 2023, após uma carta explicando que não considerava oportuna a incorporarão do país como membro pleno a em 1 de janeiro de 2024.
A presidência rotativa do BRICS, em 2025, está a cargo do Brasil, que tem enfatizado a importância de promover a reforma das instituições de governança mundial (ONU, FMI e Banco Mundial) e fortalecer a cooperação entre os países do Sul Global. A cúpula ocorrerá em um momento de desafios geopolíticos, incluindo tensões com a guerra comercial iniciada pelo presidente americano Donald Trump.
Recentemente, o cessar-fogo entre a Ucrânia e a Rússia por 30 dias é um grande caminho para a paz duradoura na Europa Oriental, proposta liderada pelo presidente Trump ao líder ucraniano Volodymyr Zelensky e ao líder russo Vladimir Putin.
A 17ª Cúpula
Sob a liderança brasileira, o grupo planeja discutir, na 17ª Cúpula do BRICS, uma variedade de temas críticos, tais como: combate à fome e à pobreza; redução das desigualdades; promoção do desenvolvimento sustentável; enfrentamento as mudanças climáticas; avanço da inteligência artificial (IA); e mais empréstimos do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) para os países emergentes.
A expansão do BRICS também será um dos principais focos da cúpula. A inclusão da Indonésia, oficializada como membro pleno em janeiro de 2025, destaca o interesse crescente de nações emergentes no grupo econômico. No entanto, nem todas as adesões foram bem-sucedidas. Em outubro de 2024, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva vetou a entrada da Venezuela, justificando que o presidente Nicolás Maduro não apresentou resultados eleitorais presidenciais transparentes.
O BRICS almeja a criação de um sistema de pagamentos utilizando moedas dos países membros. Recentemente, o presidente Lula sinalizou que o grupo quer propor a tecnologia da criptomoeda para o comércio exterior entre os dez países membros, com o uso da blockchain, reduzindo a dependência do dólar americano. Mas, o presidente norte-americano Donald Trump já ameaçou aplicar tarifas protecionistas de 100% contra os países do BRICS se isto ocorrer.
Panorama econômico dos 10 membros
Na atualidade, o grupo BRICS representa 36% da superfície terrestre do planeta, 48% da população mundial, 28% do Produto Interno Bruto (PIB) nominal global, 26% do comércio internacional e 72% das reservas internacionais do mundo.
O BRICS tem se consolidado como uma força econômica global e a entrada de novos membros fortalece ainda mais sua influência mundial, sobretudo no Sul Global. É importante analisar alguns indicadores dos dez países integrantes na atualidade.
Esses dez países emergentes, juntos, têm PIB nominal de cerca de US$ 30 trilhões, população total de cerca de 4 bilhões de habitantes e reservas internacionais de cerca de US$ 7 trilhões, e, principalmente, buscam ampliar sua influência comercial.
Entre os BRICS+ existem nove países parceiros: Cuba, Uganda, Tailândia, Cazaquistão, Bolívia, Uzbequistão, Malásia, Bielorrússia e Nigéria. Recentemente, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan revelou publicamente grandes interesses da Turquia em ingressar no grupo, sendo um país estratégico geograficamente na Europa e na Ásia.
É preciso explicar que o BRICS Plus inclui os dez países membros do grupo BRICS, mais os nove países parceiros. Portanto, o BRICS, é formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, um grupo econômico de grande relevância no cenário global. Recentemente, o grupo expandiu-se para o BRICS Plus, que agora inclui 10 países membros — com a adição do Egito, EAU, Etiópia, Irã e Indonésia — e nove países parceiros estratégicos (Cuba e Bolívia, na América; Uganda e Nigéria, na África; Tailândia, Cazaquistão, Uzbequistão e Malásia, na Ásia; e Bielorrússia, da Europa). Essa ampliação pode ter impactos no comércio agropecuário mundial, criando novas oportunidades no BRICS+ para os exportadores brasileiros, por exemplo.
A possível entrada do México
O presidente Lula convidou o México, juntamente com o Uruguai e a Colômbia, para participarem da 17ª Cúpula. Embora esses países latino-americanos não sejam membros plenos do grupo, o presidente rotativo do BRICS destacou a importância de sua participação para ampliar o diálogo internacional.
A Cúpula do BRICS reunirá líderes de dez países membros e doze países parceiros para discutir temas relevantes ao desenvolvimento sustentável e à cooperação internacional. Além de países convidados, como o México. Hoje, gera um debate interessante sobre as vantagens e desvantagens para a possível entrada do México no BRICS, considerando o contexto econômico e geopolítico vigente.
Vantagens para o México no BRICS
A diversificação das relações econômicas, pois o México tem uma forte dependência dos Estados Unidos, devido ao Tratado México-EUA-Canadá (T-MEC). Participar do BRICS poderá ampliar suas relações comerciais com economias emergentes, reduzindo essa dependência.
O acesso a novos mercados e investimentos em plena Quarta Revolução Industrial. Com economias como China e Índia no grupo, o México poderá atrair investimentos em infraestrutura, tecnologia e energia, além de fortalecer suas exportações para novos mercados.
O maior papel geopolítico, porque o BRICS busca ser um contraponto à influência ocidental liderada pelos EUA e União Europeia (UE). O México poderá ter mais peso diplomático ao integrar um grupo econômico que defende um mundo multipolar.
E o fortalecimento do peso mexicano. A criação de mecanismos financeiros alternativos ao dólar americano poderá beneficiar a economia mexicana ao reduzir sua vulnerabilidade às flutuações da moeda americana.
Desvantagens para o México no BRICS
A possível tensão com os EUA, vizinho e maior parceiro comercial. O México poderá enfrentar pressões políticas e econômicas ao se aproximar demais do BRICS, especialmente da China e da Rússia, que têm relações tensas com Washington.
Os desafios internos de integração, pois o México já está inserido em diversas alianças regionais, como a Aliança do Pacífico, desde 2012. Uma entrada no BRICS poderá criar conflitos estratégicos e dividir suas prioridades diplomáticas.
As diferenças de modelo econômico vigente. O México tem uma economia mais alinhada com o livre mercado ocidental, enquanto países como China e Rússia têm modelos econômicos fortemente influenciados pelo Estado.
E a falta de um consenso interno. Não há um posicionamento claro dentro do governo da presidenta Claudia Sheinbaum, dos empresários mexicanos e da sociedade mexicana sobre entrar no BRICS. O país latino-americano poderá preferir manter relações com o grupo sem formalizar uma adesão.
O convite para participar da Cúpula do BRICS mostra que há um interesse em aproximar o México do grupo. No entanto, a decisão de ingressar oficialmente dependerá de uma análise cuidadosa dos impactos na relação com os EUA e do equilíbrio entre vantagens comerciais e riscos políticos.
Se o México conseguir manter boas relações com ambos, T-MEC e BRICS, poderá se beneficiar economicamente sem prejudicar sua posição estratégica. Por outro lado, um alinhamento mais forte com o BRICS poderá gerar reações adversas de Washington, o que poderá afetar sua economia altamente integrada com os EUA, mas já sofrendo com as tarifas protecionistas de 25% dos produtos oriundos do México.
Desafios e oportunidades
A 17ª Cúpula do BRICS representa, portanto, uma oportunidade para os países membros reforçarem sua cooperação e influenciarem a agenda global. A expansão do grupo econômico e a inclusão de novos membros, como EAU e Indonésia, por exemplos, demonstram a relevância crescente do BRICS no cenário internacional.
Finalizando, desafios persistem, como a necessidade de equilibrar interesses divergentes e responder a pressões externas, especialmente de potências como China e Índia. Portanto, o sucesso da cúpula dependerá da capacidade dos líderes em promover um diálogo construtivo e implementar ações concretas que beneficiem não apenas os países membros e países parceiros, mas também do Sul Global.
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A redemocratização em dez atos
Eventos importantes marcaram o processo de redemocratização do Brasil, que começou em 1974 e se consolidou em 1985
[caption id="attachment_39559" align="aligncenter" width="560"] Posse do presidente José Sarney completa 40 anos[/caption]
Edição Scriptum com Agência Senado
Em 15 de março de 1985, José Sarney tomou posse como presidente da República. A data, que está completando 40 anos, é um dos pontos de maior destaque da redemocratização do Brasil e irrigou a esperança de novos tempos, após 21 anos de ditadura militar.
A transição do regime militar para o governo dos civis foi um processo longo e marcado por importantes eventos políticos e sociais. Desde a vitória da oposição nas eleições legislativas de 1974 até a posse de um presidente eleito pelo voto popular em 1990, o Brasil passou por intensos debates, manifestações populares e reformas institucionais que pavimentaram o caminho para as eleições diretas.
Veja os marcos fundamentais que simbolizam a luta do povo brasileiro pela reconstrução da sua democracia.
- 1974: Vitória da oposição na eleição para o Congresso
- 1977: Pacote de Abril

- 1978: Fim dos Atos Institucionais

- 1979: Lei da Anistia

- 1982: Eleições estaduais

- 1984: Movimento Diretas Já

- 1985: Eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral

- 1985: Morte de Tancredo e posse de Sarney

- 1987 e 1988: Assembleia Constituinte

- 1989: Eleições diretas para presidente

Modelo falido emperra o Brasil e sacrifica o povo
Para Samuel Hanan, há uma urgente correção de rota a ser feita pelo País. Problemas que não são exclusivos do governo atual, mas de todos os governos do século 21
Samuel Hanan, ex-vice-governador do Amazonas, engenheiro especializado em economia e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Recentes pesquisas de opinião mostram uma crescente queda na popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com o menor nível de aprovação na história de seus três mandatos. Nunca antes na história deste País Lula havia experimentado patamares tão baixos de avaliação popular. Motivo de natural preocupação no Palácio do Planalto, esse fenômeno mostra que o modelo atual de governo no Brasil, alicerçado basicamente no carisma de uma pessoa, não funciona mais. É um modelo falido, seja essa pessoa de direita, de centro ou de esquerda.
Diante da inflação, com alta de preços dos combustíveis, da carne, do café e do ovo, não funciona apenas culpar os governos anteriores, atacar os investidores da Faria Lima ou atribuir, indevidamente, responsabilidade ao Banco Central pelos juros altos. Esse modelo está igualmente esgotado.
Na tentativa de reverter o quadro, tenta-se de tudo, desde trocar um ministro por um marqueteiro, passando pelo investimento bilionário em publicidade do governo. O problema, no entanto, não está em quem cuida da imagem do governo, tampouco na falta de recursos financeiros do País, mas principalmente na falta de cumprimento das promessas de campanha, ainda longe de se concretizarem apesar de já estarmos na segunda metade do mandato.
O Brasil está à espera de um presidente que encarne a figura de um líder menos personalista e reúna as qualidades de um verdadeiro estadista. Um chefe do Executivo com visão estratégica, menos preocupado com o ego e com a reeleição e mais empenhado em governar para reduzir as desigualdades sociais, regionais, raciais, educacionais e de renda, enfrentando com seriedade e competência os problemas econômicos e a violência urbana.
Hoje, o cidadão brasileiro tem muitas perguntas e poucas respostas. Qual o plano de metas do governo? Qual a política educacional para tirar o País da vergonhosa 49ª posição no ranking publicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)? A expressão “sem educação não há salvação” é velha, relembrada a cada período eleitoral, porém a solução nunca chega. Por que o Brasil não paga salários dignos aos professores nem investe pesadamente no ensino em tempo integral e na capacitação e desenvolvimento dos professores? Há recursos, mas faltam metas, planejamento, gestão e transparência nos gastos. Resta a certeza de que sem qualidade no ensino, o País jamais conseguirá ser competitivo e formar bons médicos, dentistas, engenheiros, advogados, juízes, promotores de Justiça, economistas, pesquisadores e outros profissionais essenciais ao desenvolvimento de uma nação.
Também se ignora qual a política de combate à insegurança pública, situação grave alimentada pela entrada de drogas e armas pelas fronteiras, portos e aeroportos, de competência exclusiva do Governo Federal. Certo é que o Estado se mostra incapaz de conter o avanço das facções criminosas que dominam os presídios, as favelas e as ruas das grandes cidades brasileiras e cooptam jovens, inclusive indígenas, impondo suas próprias leis e desafiando diariamente as forças policiais. Não é à toa que o País é o líder mundial em homicídios intencionais, tendo registrado a incrível marca de 38.722 assassinatos em 2024. A violência também está no trânsito: 33.800 vítimas fatais em acidentes, em 2024, o que coloca o Brasil entre os quatro países do mundo nessa macabra estatística.
Na saúde, hospitais lotados, falta de vagas e medicamentos, epidemias de dengue, a volta da febre amarela e doenças antes erradicadas evidenciam políticas públicas fracassadas e o contínuo sofrimento da população. Em 2024, a dengue foi responsável por 6.041 óbitos, 400% mais que no ano anterior.
E onde está o plano de investimentos em infraestrutura para garantir mais ferrovias, rodovias, portos e aeroportos? Também não se concebe nenhum programa sério de combate à corrupção, prática antiga e cada vez mais tolerada, subtraindo a confiança nos políticos e agentes públicos, sugando o dinheiro público e fomentando a sensação de impunidade. Vergonha nacional e crescente com a presença cada vez maior do crime organizado nas instituições estatais. É bom lembrar da lição do grande artista renascentista Leonardo da Vinci: “Quem não pune o mal, incita-o a ser cometido”.
Nos dois últimos anos (2023 e 2024), o Brasil falhou novamente em reverter a trajetória historicamente recente de desmonte da luta contra a corrupção. Prova disso é o Índice de Percepção da Corrupção (I.P.C.), principal indicador mundial e produzido pela Transparência Internacional. Nesse ranking, o Brasil ocupava a 45ª posição em 2002, último ano do governo de Fernando Henrique Cardoso. Em 2010, primeiro governo Lula, o País caiu para o 69º lugar e a queda se acentuou para a 75ª colocação em 2015, durante o segundo mandato de Dilma Roussef. Com Jair Bolsonaro na presidência, o Brasil foi para o 96º lugar, em 2022 e, em 2024, no terceiro mandato de Lula, despencou para a 107ª posição, ao lado de Argélia e Turquia.
Difícil esperar algo diferente diante do afrouxamento da lei de improbidade e do silêncio reiterado do presidente da República e do Congresso Nacional sobre a pauta anticorrupção. Incrédulo, o País assiste à renegociação de acordos de leniência para beneficiar empresas envolvidas em corrupção e a manutenção no cargo de um ministro indiciado pela Polícia Federal por corrupção passiva, fraude em licitação e organização criminosa. Seria tão fácil se houvesse vontade política de se fazer uma lei tornando imprescritíveis os crimes contra a administração pública.
Ignora-se por completo o gigantismo do Estado, máquina pública ineficiente e onerosa. Hoje, o Brasil gasta com funcionalismo público de 12,3% a 12,8% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto nos 38 países da OCDE a média desse gasto é de 9,6% a 9,8% PIB. O excesso significa gastos adicionais injustificáveis de quase R$ 300 bilhões/ano, valor superior ao orçamento anual do SUS, sobrando mais de R$ 80 bilhões/ano.
Os números são um triste retrato da bancarrota nacional e um convite à reflexão. Hoje o Brasil ocupa apenas a 89ª posição entre os países da ONU com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O País era o 63º em 2002, caiu para 73º em 2010, depois para 84º em 2015, e em 2023 era o 87º. O declínio é evidente: perdemos 26 posições em IDH, o que significa acentuada queda na qualidade de vida da população.
Levantamento de 2023 mostrou que naquele ano 16,4 milhões de brasileiros, o correspondente a 7,71% da população, viviam em moradias classificadas como favelas. No ano 2000, eram 4,3% dos brasileiros nessa situação, depois 5,8%, em 2010.
O brasileiro paga muitos impostos, porém não vê a contrapartida estatal, conforme mostra o Índice de Retorno do Bem-estar Social (Irbes): o País há mais de duas décadas está estagnado na 30ª e última posição na devolução à população dos serviços de educação, saúde e segurança, entre os 30 países de maior expressão econômica e com maior carga tributária.
A desigualdade na distribuição de renda continua brutal. De acordo com o índice Gini, da ONU, o Brasil ocupa a 14ª posição entre os países mais desiguais do mundo, atrás da Costa Rica (13°), ao lado do Congo (14º) e à frente da Guatemala (15°). No PISA, índice que mede o nível de educação formal, estamos apenas na 44ª posição entre 56 países avaliados. No ranking dos 53 países da OCDE, o Brasil figura apenas na 49ª posição.
Contribui para isso o valor do salário-mínimo, renda de 55% da população brasileira: apenas US$ 265,00/mês. Esse valor dá ao Brasil a penúltima colocação entre os 16 países da América Latina. Para efeito de comparação, no Chile, primeiro nesse ranking, o salário-mínimo é de US$ 510,00/mês, quase o dobro do Brasil.
O cidadão ainda é castigado com a tributação sobre o consumo, com alíquotas pesadas que respondem por mais de 40% do total da arrecadação tributária dos três entes federativos (União, Estados e municípios). A reforma tributária, recém-aprovada, não aliviou a situação porque resultou ao brasileiro o ônus de pagar a maior alíquota do mundo (entre 28% e 28,5% do valor do bem ou produto ou mercadoria).
E como se não bastasse, o governo ainda tributa inflação – que sabidamente não é renda – ao não fazer a correção anual das tabelas do Imposto de Renda pelo IPCA. A isenção atual, de R$ 2.826,25, está defasada em 127,32%, segundo o Sindifisco Nacional. A isenção correta seria R$ 5.135,16/mês. Se aplicada, beneficiaria cerca de 94% dos trabalhadores com carteira assinada. Isto é: o Brasil precisa de lei tornando obrigatória a correção anual das tabelas do Imposto de Renda pela inflação do ano anterior, e não fazer, como tem sido, somente nos anos eleitorais, por vontade ou conveniência do governante de plantão.
Além disso, a recente lei que alterou o cálculo do reajuste anual do salário-mínimo, no tocante à parcela de ganho real acima da variação do IPCA (inflação), prejudicou o bolso, a mesa e a renda do brasileiro que ganha um salário-mínimo/mês. Isso porque retirou do trabalhador e do aposentado R$ 9,57/mês, ou R$ 121,41/ano, o suficiente para comprar oito quilos de arroz ou sete quilos de feijão no ano. Esse valor o brasileiro receberia se não houvesse essa lei, uma vez que o salário teria sido corrigido pela inflação de 2023 e adicionalmente, a taxa de crescimento percentual do PIB de 3,2%.
Com a nova sistemática de cálculo, as pessoas com renda mensal de um salário-mínimo serão responsáveis pela participação de 22% da redução de gastos do programa do Governo Federal, aprovado pelo Congresso Nacional para o biênio 2025/2026. Ou seja, o governo economiza tirando alimento da mesa do trabalhador mais humilde. O efeito vale também para o Bolsa Família: sem a obrigação da correção anual pelo IPCA, os beneficiários perderam R$ 18,80/mês. A dimensão dos efeitos da nova lei é assustadora: a redução do valor do aumento real do salário-mínimo atinge 70% dos aposentados e pensionistas da Previdência Social e 80% da população dos Estados de Alagoas, Amazonas, Maranhão e Paraíba (mais de 18 milhões de pessoas). Significa que afeta mais de 55% da população brasileira. Temos um governo que é Robin Hood às avessas.
E não é só. Com a reforma tributária aprovada em 2024, o Brasil terá em breve a maior alíquota do mundo, da ordem de 28% a 28,5% do valor do bem, do produto ou da mercadoria. O governo cria, dessa forma, um fardo pesado demais para o cidadão carregar porque impõe excessiva tributação sobre o consumo de gêneros e produtos que o brasileiro adquire nos supermercados, farmácias e outros estabelecimentos.
Em suma, tira-se a renda do cidadão. Gosto de lembrar de 2 frases, a primeira de John Kenneth Galbraith, um dos mais importantes economistas do mundo, “Nada mais eficaz para limitar a liberdade, incluindo a liberdade de expressão, como a total falta de dinheiro”. E a segunda, mais ácida, do político e consultor norte-americano Harry Browne, “o Governo é bom em uma coisa, ele sabe como quebrar as suas pernas apenas para depois lhe dar uma muleta e dizer: veja, se não fosse pelo Governo você não seria capaz de andar”.
Esse é o retrato do que vem ocorrendo no Brasil, tira-se o dinheiro do assalariado e do aposentado (não-correção da tabela do imposto de renda, alteração reajuste salário mínimo, falta de seriedade no controle da inflação, em especial dos preços do alimentos) e, em vez de o governo retornar oferecendo dignidade ao povo, com soluções eficazes e permanentes, oferta-lhe muletas por meio de programas como o auxílio-gás (R$ 3,55 bilhões/ano, para 22 milhões de pessoas), Bolsa Família (R$ 170 bilhões/ano, para 20,8 milhões de famílias), Benefício de Prestação Continuada (R$ 80 bilhões/ano, para 4,7 milhões de pessoas), além do auxílio-dignidade menstrual e o confuso Pé de Meia.
Com esses programas, o governo gasta cerca de 2,3% do PIB, quase 5% do orçamento da União, oferecendo alívio temporário aos mais carentes, porém sem retirar os beneficiários da linha da pobreza.
Há, na realidade, uma transferência compulsória de renda das classes B, C e D para os cofres do governo, um montante da ordem de R$ 45,8 bilhões por ano, segundo os especialistas, muitas vezes por meio de tributos disfarçados. O pior é que esse dinheiro retirado de cerca de 36 milhões de brasileiros sustenta uma farra de privilégios, em uma situação vergonhosa e desafiante do bom senso e da moralidade pública. A imprensa tem noticiado com frequência o pagamento de mais de R$ 200 mil mensais a membros do Ministério Público e vencimentos superiores a R$ 150 mil de membros do Poder Judiciário – muito acima do teto constitucional –, além de polpudas remunerações de ministros de Estado por meio de jetons recebidos na condição de membros de conselhos das estatais federais e de centenas de milhões de reais destinados a emendas Pix do Congresso, sem qualquer transparência. Além dos privilégios reservados aos membros dos diferentes poderes acresce a farra dos gastos tributários de mais de R$ 500 bilhões para os setores escolhidos pelo governo. Enquanto isso, um professor recebe R$ 3.945,00 por mês, cumprindo jornada de trabalho de 40 horas semanais.
Há uma urgente correção de rota a ser feita pelo País. Esses problemas não vêm de agora e não são exclusivos do governo atual, mas sim de todos os governos do século 21. A solução deve vir através da redução de privilégios e redução de gastos públicos, além de políticas efetivas de combate à corrupção e o fim da reeleição para cargos do Executivo, tudo acompanhado de propostas para oferecer, efetivamente, melhores condições de vida à população, propiciando a todos os brasileiros uma existência digna na qual ninguém dependa de favores do governo, mas possa usufruir de políticas públicas eficientes e festejar um Brasil mais justo e menos desigual.
Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
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