Antonio Paim, filósofo e historiador (*)
Benjamin Constant (1767-1830) foi o pensador liberal que enfrentou, em caráter pioneiro, as questões teóricas suscitadas pela Revolução Francesa. A primeira delas dizia respeito à denominada soberania geral (ou popular), em nome da qual passou a ser exercido o poder, que além das atribuições clássicas, deveria promover a virtude, mesmo às custas de sucessivos banhos de sangue, como de fato ocorreu.
As emanadas do novo sistema expressariam a vontade geral, conceito popularizado por Jean-Jacques Rousseau. Esse corpo doutrinário, em vista de que emergira na luta contra a monarquia absoluta, chegou a ser batizado de “liberalismo radical”, denominação totalmente inapropriada. No período recente, preferiu-se chamá-lo de democratismo porquanto nada tem a ver com democracia, como se viu da atuação de seus herdeiros totalitários neste século.
Em seu “Princípios de política aplicáveis a todos os governos” (1810), Constant não rejeita a ideia de soberania popular. Mas estabelece que não compete a nenhum indivíduo ou grupo social, em seu nome submeter o restante da população. Ademais, é falso que a sociedade, em seu todo, possua sobre seus membros soberania sem limite.
Depois de proceder a avaliação crítica das teorias defendidas no “Contrato Social”, escreveu o seguinte: “Os cidadãos possuem direitos individuais independentes de toda autoridade social ou política, e toda autoridade que viole esses direitos torna-se ilegítima. Os direitos dos cidadãos são a liberdade individual, a liberdade religiosa, a liberdade de opinião, na qual se compreende a liberdade de imprensa, o usufruto de sua propriedade e garantias contra todo arbítrio”.
E mais: “Os representantes de uma nação não têm o direito de conquista, ou sem o consentimento popular, o uso de poderes sem limites. Deus, se intervém nas coisas humanas, somente sanciona a justiça. O direito de conquista não é senão a força, jamais um direito”. Para limitar a soberania é necessário encontrar instituições políticas capazes de permitir que se expressem os diversos interesses.
No entendimento de Constant, o arranjo institucional que facultará tal possibilidade consiste na monarquia constitucional, subdividida em cinco poderes: o poder real, o poder executivo, a representação da permanência, a representação da opinião e o judiciário.
O Poder Real correspondente ao que, na Constituição brasileira de 1824, foi chamado de Poder Moderador. O que designa como “representação da permanência” equivale ao órgão vitalício e hereditário, que em alguns países correspondia ao Senado e, na Inglaterra, à Câmara dos Lordes.
Comentando esse arranjo institucional, Ubiratan Macedo escreve o seguinte: “Outra tese de Benjamin Constant que teve grande curso seria atribuição de um papel especial ao monarca… que veio a ser conhecido como Poder Moderador. Na fase em que viveu o nosso autor, a questão não se resumia à harmonia entre o Judiciário e o Executivo ou entre este e o Parlamento. A rigor, não existia Parlamento, mas duas Câmaras separadas e frequentemente em conflito. Havia também atritos entre o Rei e seus Ministros, num tempo em que somente na Inglaterra se consagrava a figura do primeiro-ministro. De sorte que tem toda pertinência a ideia de criar-se uma outra magistratura, com atribuições de exercitar a coordenação dos vários poderes, pairando acima deles como árbitro. Essa doutrina deve ser avaliada à luz da circunstância concreta em que apareceu. Em sua época, a ideia era absolutamente válida e, de certo modo, imprescindível, porquanto o sistema de governo constitucional, inaugurador de uma nova realidade de poder descentralizado, ainda não havia formado os mecanismos coordenadores que se criariam de formas múltiplas, segundo a experiência de cada país” (O liberalismo doutrinário, in “Evolução histórica do liberalismo”, Belo Horizonte, Itatiaia, 1987, p. 38).
Constant examinou cada uma das mencionadas instâncias, caracterizando-as e lhes definindo funções específicas. O livro contém uma tese inovadora acerca da representação política, que sobreviveria ao longo do tempo. Trata-se da definição de que seria de interesses. Admite, como avançou Rousseau, a existência de um interesse geral (nacional, digamos), mas recusa a hipótese de que estaria obrigatoriamente contraposto aos interesses individuais e de grupos.
Ao contrário disto, o interesse geral resulta da mediação entre os interesses reais, incumbência da representação política. Ao estabelecê-lo, determina de pronto qual o papel que à Assembleia cabe desempenhar.
Constant postula ainda a existência do que denomina de “interesses de todos”, distintos do interesse geral. Este configuraria esfera de atuação do Estado, enquanto o primeiro deve estar a salvo tanto da ingerência estatal como da negociação. Diríamos hoje que tem em vista os direitos da pessoa, isto é, os direitos civis e políticos (a questão dos direitos sociais ainda não surgira).
Constant exemplifica com a liberdade religiosa, enfatizando que o Estado deve limitar-se a assegurá-la, sem pretender imiscuir-se na escolha individual, direito este que cabe manter a salvo da barganha e da negociação, sendo inalienável.
O livro contém uma análise sistemática de todas as questões relacionadas à nova forma de governo, isto é, ao sistema representativo. Enfatiza a necessidade de delimitar as áreas em que se dará a escolha – o que depois chamou-se de distrito eleitoral, inclinando-se pela eleição em dois graus, sistema que vigorou no Brasil imperial, até a década de oitenta, a exemplo do que ocorria em diversos outros países.
Considera também a extensão do sufrágio, limitando-o como era de praxe na época, bem como o processo eleitoral. Louvando-se da experiência da Revolução Francesa, entende por bem fixar a forma de funcionamento da Câmara, discutindo a iniciativa das leis. O Executivo é igualmente caracterizado, referindo-se inclusive à responsabilidade dos ministros. Não escapam à sua atenção as atribuições do poder municipal e a organização da Forças Armadas num Estado constitucional. Cada um dos principais direitos é considerado de per si.
Bem consideradas as coisas, os “Princípios de Política” fixaram a estrutura que deve ser adotada numa Constituição que se proponha regular o funcionamento do sistema representativo.
(*) Este texto faz parte da série de 10 artigos escritos por
Antônio Paim no início de 2021, pouco antes de sua morte
Revisão final de Rogério Schmitt