Antonio Paim, historiador e colaborador do Espaço Democrático
Carlos Lacerda tornou-se uma figura central no chamado interregno democrático (1945-1964), primeiro como jornalista, depois como deputado federal, a partir de 1955, tornando-se líder da União Democrática Nacional (UDN). Esse partido havia herdado a tradição liberal que chegara a sobreviver nos tumultuados anos 1930 e que iria desaguar na candidatura Armando Salles à presidência nas eleições de 1938, que não se realizaram. Dessa herança ficou-lhe sobretudo o antigetulismo, isto é, o primado da defesa das instituições democráticas em sua plataforma. Mas enfraquecida pela ascendência católica (assegurada pela presença esmagadora dos mineiros em sua liderança), sobretudo no que se refere à questão social. Mas também pela aceitação da tutela militar, traço aliás comum à imensa maioria da elite política da época.
Lacerda expressava uma espécie de obsessão antigetulista, o que o levaria a apostar cada vez mais nas soluções de força. Conspirou abertamente para impedir a volta de Vargas ao poder, sem levar em conta que tal se dava graças ao sistema eleitoral introduzido em 1945-1946. E, diante do desfecho eleitoral, tudo fez para impedi-lo de governar. Aceitando a provocação, a guarda pessoal de Vargas promoveu um atentado para assassiná-lo, do que resultou a morte do major Rubens Vaz, oficial da Aeronáutica, e o agravamento da crise a ponto de Vargas ter recorrido ao suicídio. Tramou golpe militar para impedir a posse de Juscelino Kubitschek e não tendo sido bem-sucedido na tentativa de efetivá-lo (em novembro de 1955), exilou-se durante um ano nos Estados Unidos.
De regresso ao País, sem alterar em nada a sua conduta, elegeu-se governador da Guanabara (estado criado em decorrência da mudança da capital para Brasília) vindo a ser um dos artífices do movimento militar que depôs a João Goulart. Tendo os militares optado por permanecer no poder, rompeu ostensivamente com a nova situação, dando provas, em seguida, da incapacidade de apresentar ao País uma proposta viável de reordenamento democrático.
Vejamos, de modo mais circunstanciado, a trajetória do personagem que diz bem do distanciamento da liderança liberal brasileira daquele período, do caminho seguido pela doutrina liberal na Europa e nos Estados Unidos.
Carlos Lacerda nasceu no Rio de Janeiro, no seio de família de políticos. O avô, Sebastião Lacerda, foi ministro no primeiro governo civil da República e, mais tarde, ministro no Supremo Tribunal Federal. Seu pai, Maurício Lacerda, foi deputado federal de 1912 a 1920 e na década de 1930, se notabilizou como socialista, destacando-se entre os que, no Parlamento, estruturaram a legislação social de índole democrática abandonada por Vargas que optou por solução autoritária, atrelando os sindicatos ao Estado. Os outros filhos de Sebastião Lacerda (Fernando e Paulo, seus tios, portanto) ingressaram no Partido Comunista.
Depois de concluir humanidades, frequentou a Faculdade de Direito, onde sofreu influência dos professores marxistas que ali exerciam a docência. Desinteressou-se do curso, preferindo dedicar-se ao jornalismo. Nos anos 1930 chegou a militar na Aliança Nacional Libertadora, formada pelos comunistas, mas com estes romperia publicamente.
No período de desgaste do Estado Novo, logo despontou no primeiro plano graças ao fato de ter entrevistado um velho aliado de Vargas, José Américo de Almeida, no início de 1945. A entrevista continha críticas ao regime e reivindicava a convocação de eleições. Como a censura a deixou passar, transformou-se num marco do fim do Estado Novo. Ainda nesse ano, Lacerda liderou campanha contra a candidatura com a qual o Partido Comunista concorria às eleições presidenciais. A partir de então, adicionaria ao antigetulismo assumido pela UDN, um feroz anticomunismo. A partir de dezembro de 1949 passou a contar com jornal próprio, Tribuna de Imprensa. Esse jornal e a pessoa de Carlos Lacerda passariam a ocupar uma posição de maior destaque no cenário político nacional a partir da eleição de Vargas à presidência da República, em 3 de outubro de 1950.
Com o propósito de organizar a mobilização popular, sob a sua liderança Lacerda criou, em 1953, o Clube da Lanterna. Pela imprensa e através de manifestações de rua lançou uma campanha nacional contra Vargas e seu governo. Progressivamente, o getulismo e o antigetulismo tornaram-se os polos aglutinadores centrais da política brasileira. Na medida em que emergiam a figura de João Goulart e do trabalhismo, o anticomunismo também passaria a dar o tom da divisão do País.
Graças à ascendência esmagadora dessa temática, a nação praticamente não tomou conhecimento do fato de que, na mesma altura, a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos dotava o País de poderoso instrumento de modernização econômica, como viria a ser demonstrado sob Kubitschek e, mais tarde, durante os governos militares.
Lacerda saberia valer-se do pretexto que o grupo no poder iria proporcionar-lhe ao tentar assassiná-lo, no início do mês de agosto de 1954. Rapidamente Vargas se viu isolado no governo, a ponto de que os próprios comandantes militares pedirem a sua renúncia. Não se dispondo a fazê-lo, preferiu suicidar-se. A comoção popular que o fato desencadeou voltou-se contra a imprensa antigetulista, que teve suas instalações destruídas por multidões furiosas. A Tribuna de Imprensa escapou de ser empastelada pela ação da polícia. Carlos Lacerda teve que ausentar-se da cidade.
Empossou-se o vice-presidente, Café Filho, e a UDN tomou conta do governo. Valendo-se da circunstância, Lacerda empenhou-se, sem sucesso, no adiamento das eleições presidenciais que deveriam realizar-se em outubro de 1955. Nesse pleito foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro. Para a presidência da República venceu a chapa Juscelino Kubitschek-João Goulart (PSD-PTB). Conforme foi referido, sob a liderança de Carlos Lacerda, tentou-se um golpe de Estado para impedir a sua posse. Derrotado, Lacerda ausentou-se do País durante quase todo o ano de 1956, regressando ao Brasil em novembro.
Assumiu o mandato de deputado federal, vindo a liderar a bancada udenista. Passava a dispor de mais uma tribuna a que daria o mesmo sentido: oposição sem quartel a Kubitschek. Desta vez, contudo, iria defrontar-se com um político que soube dotar o País de um projeto mobilizador.
No pleito de outubro de 1960, Carlos Lacerda seria eleito governador da Guanabara, mandato do qual desincumbiu-se de forma brilhante, acrescentando à sua imagem a de bom administrador. Sob os governos militares, o Estado da Guanabara seria extinto, tendo sido efetivada a sua unificação ao tradicional estado do Rio de Janeiro.
No plano nacional, contudo, Carlos Lacerda manteve o mesmo diapasão. Não obstante ter sido Jânio Quadros eleito pela UDN, fez-lhe oposição por ter apoiado o governo comunista de Cuba. Com a renúncia de Jânio e a tumultuada posse de Goulart, voltou ao precedente golpismo, afinal consumado.
Derrubado Goulart, o governo acabaria em mãos dos militares, sendo o primeiro deles o general Castelo Branco. Mais uma vez, Lacerda iria indispor-se com o primeiro mandatário em exercício.
A primeira manifestação de descontentamento com os militares adviria da decisão de prorrogar o mandato de Castelo Branco. Em princípio, incumbia-lhe concluir o mandato de Jânio e Goulart, realizando eleições em outubro de 1965. Lacerda atacou violentamente, como era de seu temperamento, a iniciativa em curso. Proclamou que seria um novo 10 de novembro (Estado Novo), com a anuência do Congresso.
Em julho de 1964, o Congresso aprovou o adiamento das eleições para outubro de 1966 e a prorrogação do mandato de Castelo Branco até março de 1967. A partir daí passou a criticar abertamente o governo, articulando o que se denominou de “Frente Ampla”, que contou com a adesão de Juscelino Kubitschek e de João Goulart. O movimento destinava-se à conquista de eleições livres e da reorganização partidária. Sobreviveu até o segundo governo militar (Costa e Silva). Neste, chegou a realizar dois comícios populares contando com grande afluência de público. Em abril de 1968, o governo proibiu todas as atividades da Frente Ampla. Nesse ano, sucederam-se as manifestações de descontentamento com a permanência dos militares no poder. A resposta foi o Ato Institucional número 5 (dezembro de 1968) que reintroduziu a cassação de mandatos, implantou feroz censura à imprensa e a violenta perseguição aos oposicionistas. Afinal, os militares decidiram a implantar no País uma ditadura, inclusive fechando o Congresso. Lacerda foi preso, mas acabou sendo libertado. Mesmo assim teve os direitos políticos suspensos por dez anos.
No que lhe restou de vida, cerca de nove anos, afastou-se inteiramente da política, dando ao País uma demonstração de sua extrema capacidade realizadora. Assim como a todos, surpreendeu com a qualidade da administração que realizou ao governar a cidade do Rio de Janeiro – já que era tido como um agitador sem escrúpulos – e valeu-se das oportunidades surgidas com a transformação do Brasil numa nação industrial para estruturar empreendimento financeiro, onde revelou ampla competência como empresário. E não apenas isto: criou uma editora (Nova Fronteira) onde teria oportunidade de demonstrar achar-se de posse de grande cultura, que soube plasmar em livros e programas editoriais.
O conhecido brazilianista John Watson Foster Dulles (1913-2008) dedicou-lhe uma alentada biografia, em três volumes, que começa assim: “O major Rubens Vaz, antes de ser assassinado em 1954 pelos tiros endereçados a Lacerda, havia sugerido que este amenizasse os seus mordazes ataques; mas o jornalista e orador defendeu seu estilo político agressivo insistindo que era preciso sacudir o País”.
Carlos Lacerda faleceu no Rio de Janeiro em maio de 1977, pouco depois de completar 63 anos de idade.