Antonio Paim, historiador e colaborador do Espaço Democrático
Pedro Aurélio de Góis Monteiro cursou a escola militar que funcionava em Porto Alegre com a denominação de Escola de Guerra. Concluiu-a em 1910, quando recebeu a patente de aspirante (a oficial). Passou a servir no próprio Rio Grande do Sul, onde permaneceu até 1916, formando seu espírito na República Positivista que os castilhistas haviam implantado naquele Estado. Reconhecidamente tornou-se tanto castilhista como gaúcho, mesmo no linguajar e nos hábitos. A mulher que desposou pertencia a tradicional família da terra e os filhos ali nasceram.
Tudo isto iria traduzir-se no rumo que conseguiu imprimir ao Exército. Sobrevivera o grupo formado a partir do ideário de Benjamin Constant, que lhe atribuía contribuir para o progresso do país. Aos poucos, contudo, essa pretensão acabou centrada no empenho de modernizar a própria instituição, talvez como decorrência do despreparo que demonstrou na Guerra de Canudos. A ingerência direta na política parecia arquivada. A partir da década de 1920, essa situação se alterou graças às revoltas promovidas pelos oficiais de baixa patente (os chamados “tenentes”).
Caberia a Góis Monteiro dotar a instituição de um projeto que se mostraria exequível durante largo período de nossa história. Os acontecimentos adiante descritos iriam prepará-lo para o desfecho.
Foi transferido para o Rio de Janeiro a fim de frequentar os cursos da Missão Militar Francesa, presente no País como desdobramento do projeto de modernização do Exército. Ficaria conhecido, na década de 1920, como “oficial legalista” por ter combatido os diversos movimentos insurrecionais então ocorridos. Não obstante, aceitou assumir a chefia militar da Revolução de 1930. O posto havia sido oferecido a Luiz Carlos Prestes. Tendo se tornado comunista, acabou incompatibilizando-se com os articuladores.
O desempenho de Góis Monteiro no comando da tropa rebelada no Sul credenciou-o a voos mais altos na nova situação. A par dos seus inegáveis méritos pessoais, seria beneficiado pela progressiva conquista da hegemonia do movimento pelos castilhistas, aos quais estava muito ligado, inclusive a Vargas, pessoalmente. Em março de 1931 foi promovido a coronel e, dois meses depois, a general de brigada e comandante da Região Militar de São Paulo. Coube-lhe a missão de combater e derrotar a Revolução Constitucionalista de 1932.
Embora entendesse ser imprescindível a ingerência militar na política, buscou fazê-lo institucionalmente. Foi um dos organizadores do Movimento Três de Outubro, que viria a ser uma espécie de partido político dos tenentes. Achava que, por esse meio, preservaria a unidade do Exército, evitando que os oficiais se filiassem abertamente a partidos. E mesmo quando a unidade viu-se quebrada, tanto nos movimentos que reprimiu nos anos 1920 como na cisão ocorrida em 1930 e 1932, tratou de evitar punições dos derrotados e prejudicá-los na sua carreira militar. Abriu uma exceção a esse procedimento no caso da intentona comunista de 1935. Recusava peremptoriamente a sua proposta. Como bom castilhista, ainda que não valorizasse o arranjo institucional democrático-representativo, era basicamente conservador em matéria política.
A rigor, coube a Góis Monteiro afeiçoar o Exército ao intervencionismo militar que vigorou dos anos 1930 a 1964. Teve a possibilidade de fazê-lo porquanto seria ministro da Guerra nos anos de 1934 e 1935 e chefe do Estado Maior do Exército de 1937 a 1943. Voltaria à chefia do Ministério em agosto de 1945, quando já se encontravam delineados os passos para a substituição de Vargas, por eleições, consagrando-se o fim do Estado Novo. Em outubro, Vargas tentou alterar as regras do jogo, dando ao Congresso, eleito juntamente com o presidente, a atribuição de escolher os governadores estaduais e suas respectivas Assembleias Legislativas. O Exército obrigou o governante a revogar a providência.
A 29 de outubro, Vargas tentou uma outra manobra, nomeando para a chefia de Polícia do Rio de Janeiro o seu irmão, Benjamin Vargas. Sob a liderança do ministro, os generais entenderam que Vargas não podia continuar à frente do processo e o depuseram. O governo foi entregue ao presidente do Supremo Tribunal, a quem coube presidir as eleições.
Vê-se, pois, que a partir de determinado momento as Forças Armadas passaram a tutelar o Estado Novo. Nas eleições de 2 de dezembro de 1945 concorreram dois chefes militares, o ex-ministro da Guerra, general Eurico Dutra, e o chefe da Aeronáutica, brigadeiro Eduardo Gomes. Na década de 1950, tornou-se rotina essa intervenção das Forças Armadas. Consagrou-se a doutrina implantada por Góis Monteiro.
Ele faleceu em outubro de 1956. No primeiro decênio do interregno democrático continuou como uma grande presença no processo político. Valendo-se da prerrogativa que a legislação da época facultava, licenciou-se do Exército para disputar uma cadeira de senador (por seu estado natal, Alagoas), elegendo-se para a Legislatura 1947-1951. De volta ao Exército, mais uma vez foi Chefe do Estado Maior (1951-1952) e, em seguida, ministro do Superior Tribunal Militar, até o falecimento.
Nova doutrina da ingerência militar na política – Góis Monteiro publicou, em 1934, livro intitulado A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército. O desafio que tinha pela frente dizia respeito a evitar a partidarização das Forças Armadas, ameaça real dada a ascensão dos movimentos integralista e comunista. Vejamos, por suas linhas gerais, em que consiste.
Numa certa medida, o papel que preconiza para as Forças Armadas está associado ao seu desapreço pelo governo representativo. Contudo, prolongando-se a prática que iniciou, ainda no Estado Novo, até o chamado “interregno democrático” (1945/1964), sobreviveu em regime constitucional.
Indique-se sucintamente como expressa a mencionada indisposição.
“A eleição direta no Brasil é uma burla e uma imoralidade”. Entende tratar-se “de processo ilógico de escolha, senão quando se trata de interesses também diretos e celulares”.
“Fora daí – prossegue – no que concerne aos interesses mais completos, só a eleição em graus sucessivos constituirá uma forma de democracia organizada”.
Outro grave defeito da República brasileira encontrar-se-ia na federação. Ao contrário dos Estados Unidos, aqui esse sistema “sobrepôs os interesses regionais aos interesses nacionais”. Conclui: “foi a prática defeituosa de um regime inadequado que impediu a formação de uma ideologia nacional… e não permitiu a organização da opinião pública correspondente ao todo, isto é, à União, mas sim às partes constitutivas. O Brasil tornou-se, como já se disse, um corpo sem alma e por isto caiu como cai um corpo morto”.
E a Revolução de 1930? Afirma não ter produzido “a maioria dos efeitos esperados”. Deixou de concluir a obra de destruição “que seria mais fácil no período ditatorial”. “Será muito mais aleatória no período constitucional, sobretudo com a democracia liberal e os excessos de individualismo”. Vê-se, pois, que não apostava grande coisa na fase que se avizinhava (não perder de vista que estávamos em 1934).
Parece-lhe mais grave que não tenha alcançado a organização do que chama de “forças nacionais” e, presumivelmente, identifica com o que entendia por opinião pública. Tem presente que nos países de democracia consolidada essas forças se expressam através dos partidos políticos. Mas descarta desde logo essa alternativa, na convicção de que atendem a interesses “particulares”.
Valoriza a tentativa de organização dos tenentistas em órgãos suprapartidários, mencionando o Clube 3 de outubro. Mas tem dúvidas quanto ao seu destino, cessado o caráter revolucionário do regime. O principal mérito que atribui a esse tipo de organização reside em que evita a participação direta, em agremiações partidárias, de membros das Forças Armadas. Insiste em que a missão que lhes cumpre realizar é de todo incompatível com qualquer espécie de “partidarização”. Chega a associar esse desfecho ao que chama de “militarismo” e insiste em que seria contra as mais profundas características de nosso povo.
A conclusão é a seguinte: “Não havendo a opinião pública se organizado em forças nacionais, restam as forças particularistas que não podem mais dispor e concentrar em suas mãos os interesses da nacionalidade. Ficam o Exército e a Marinha como instituições nacionais e únicas forças com esse caráter e só à sombra delas é que, segundo a nossa capacidade de organização, poderão organizar-se as demais forças da nacionalidade”.
Afirma taxativamente que as Forças Armadas são a espinha dorsal do Estado. E, prossegue: “As forças militares nacionais têm que ser, naturalmente, forças construtoras, apoiando governos fortes, capazes de movimentar e dar nova estrutura à existência nacional, porque só com a força se pode construir, visto que com a fraqueza só se constroem lágrimas.”
Estava aí esboçada a doutrina segundo a qual incumbe às Forças Armadas tutelar o Estado. Guindado à condição de chefe do Exército, Góis Monteiro tratou de aprimorar essa prática que culminaria com a deposição de Vargas, em fins de 1945.
A sofisticação que essa doutrina experimentaria, no pós-Estado Novo e até março de 1964, seria a associação dessa função tutelar à ideia do Poder Moderador. Deve-se creditar a Borges de Medeiros ter aventado a hipótese de que o regime republicano comportaria a existência desse quarto poder. Na verdade, esta seria uma concessão tardia do velho caudilho castilhista, depois de ter passado toda a República Velha a depreciar a experiência imperial.
O certo é que no pós-Estado Novo a elite política nacional aceitou tacitamente a tutela das Forças Armadas. Basta ver a insistência em promover candidaturas militares à Presidência da República. A opção por denominá-la de função moderadora seria, na verdade, uma forma de dourar a pílula. Somente no ciclo histórico posterior aos governos militares é que essa doutrina viria a ser contestada.
Coube ao primeiro governo militar (1964-1967), exercido pelo general Castelo Branco, a missão de inviabilizar, na prática, a ingerência militar na política, consagrada com a República. Trata-se da limitação da permanência no generalato a doze anos. A par disto, o afastamento das Forças Armadas para concorrer ou exercer cargos políticos, alheios à corporação, torna-se definitiva. No passado, tivemos oficiais generais que, depois se terem consagrado na política, voltaram à tropa sem quaisquer percalços. O próprio Góis Monteiro é exemplo disto.
No seio do oficialato parece aceita a tese de Samuel Huntington (1927-2008) segundo a qual a ingerência militar na política traduziria baixos níveis de profissionalização (The Soldier and The State, 1957). Expressa claramente essa compreensão a obra do brigadeiro Murilo Santos, intitulada O caminho da profissionalização das Forças Armadas (Ed. do Instituto Histórico da Aeronáutica,1987).