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{ GRANDES PERSONAGENS BRASILEIROS }

Milton Campos e o descompasso com a evolução da doutrina liberal

Historiador Antonio Paim escreve sobre o primeiro ministro da Justiça do governo militar

Mineiro de família tradicional, Milton Campos concluiu a Faculdade de Direito, sediada em Belo Horizonte, em 1922. Dedicou-se à advocacia e teve atuação política na década de 1930, como deputado estadual. Durante o Estado Novo, colaborou no movimento oposicionista. Contudo, somente tornar-se-ia figura exponencial da política brasileira no chamado “interregno democrático”, sendo um dos fundadores da União Democrática Nacional (UDN). Como prócer udenista, seria deputado à Constituinte de 1946; governador de Minas Gerais (1955-1959), senador (1959-1964) e duas vezes candidato à vice-presidência da República. No período subsequente, quando os militares assumiram o poder, participou do primeiro desses governos.

Afastado do governo desde 31 de janeiro de 1951, Milton Campos somente conquistaria novo mandato nas eleições parlamentares de outubro de 1954, quando se elegeu deputado federal. Nessa condição, ascendeu à presidência da União Democrática Nacional, cargo em que se manteria até o início de 1957. As eleições presidenciais teriam lugar a 3 de outubro de 1955. A UDN, mais uma vez, concorreu com um candidato militar (general Juarez Távora), tendo a Milton Campos como vice. Juscelino Kubitscheck venceu.

Data desta última fase a adesão de Milton Campos ao parlamentarismo. Convencera-se de que o presidencialismo mostrava-se incapaz de proporcionar estabilidade política ao País. Como se verá, essa opção o terá impedido de escolher o caminho (possível e acertado) de empreender a reforma política – questão a que passara a atribuir a devida importância –, quando se deparou com a possibilidade de empreendê-la.

Nas eleições parlamentares de outubro de 1958, conquistou cadeira no Senado, tomando posse a 1° de fevereiro de 1959. Seria candidato a vice-presidente na chapa liderada por Jânio Quadros, mas perdeu para o candidato da oposição (João Goulart), possibilidade facultada pela legislação da época. Essa circunstância iria tornar Goulart presidente da República, com a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. Dadas as dimensões assumidas pelo movimento popular que iria propiciar a sua derrubada a 31 de março de 1964, Milton Campos decidiu-se por atuar naquele sentido.

Buscando talvez dar à opinião pública uma demonstração de que o movimento destinava-se de fato a assegurar a tranquila reconstitucionalização do País, garantindo as eleições presidenciais de 1965, o general Castelo Branco, chefe do primeiro dos governos militares resultantes daquele movimento, nomeou Milton Campos para o Ministério da Justiça. Ao que parece, não se tinha dado conta (ou ainda não se formara, no Exército), da chamada “linha dura”, cujo objetivo seria perpetuar a nova situação. Criou-se um ambiente que não comportava a presença de personalidade como Milton Campos numa pasta de grande relevância na época, mais tarde ocupada, precisamente, por juristas plenamente afinados com a mencionada facção militar.

Em duas oportunidades Milton Campos expressou o seu entendimento da missão que incumbiria ao movimento de 1964. A primeira, logo no início do governo, ao indicar que a legislação à qual iria se dedicar teria por objetivo “resguardar a revolução de seus inimigos e avançar no processo de recuperação do regime democrático”. Ao fazê-lo, entrou abertamente em choque com o ministro da Guerra, Costa e Silva, que, nessa condição, no governo Castelo Branco, ao que tudo indica, estruturou a “linha dura” com vistas a galgar a presidência.

A segunda, quando lhe pareceu que o regime seguia um curso frontalmente contrário à motivação que legitimara a sua realização. O incidente prendeu-se às eleições diretas para governadores, previstas para outubro de 1965, que seriam mantidas, em que pese tivesse sido abolido o pleito presidencial, que deveria ser concomitante, eliminado devido à prorrogação do mandato de Castelo Branco. A linha dura vetou candidaturas, mas não conseguiu impedir que dois governos ficassem em mãos de pessoas ligadas a Kubitschek, cujos direitos políticos haviam sido cassados (Estados da Guanabara, em que se transformara a antiga Capital da República, e Minas Gerais). O governo respeitou o resultado das urnas, mas editou outro Ato Institucional (o de número dois, sendo que o primeiro tivera em vista a substituição de Goulart por votação indireta) dissolvendo os partidos políticos existentes e introduzindo o bipartidarismo. Milton Campos pediu demissão do cargo de ministro da Justiça.

Na carta em que formalizou o pedido, afirmou: “Não me considero o melhor intérprete da Revolução, mas entendo que não é útil a ela muito do que recentemente se fez, sobretudo pela maneira como foi feito.” Regressando à tribuna do Senado, assim completaria este pensamento: “A revolução há de ser permanente como ideia e inspiração, para que, com a colaboração do tempo, invocada pacientemente, possa produzir seus frutos… O processo revolucionário há de ser transitório e breve, porque sua duração tende à consagração do arbítrio, que elimina o direito, intranquiliza os cidadãos e paralisa a evolução do meio social. O que urge institucionalizar, portanto, é a revolução e não o seu processo”.

Como ministro da Justiça do primeiro governo militar, Milton Campos concebeu uma reforma política que facultou o fortalecimento dos partidos. Duas providências que conseguiu ver aprovadas foram abandonadas pela Carta de 1988. E, em que pese os esforços empreendidos por alguns líderes políticos, têm sido frustradas as tentativas de reintroduzi-las.

A primeira corresponde à proibição de coligações em eleições proporcionais. Essa prática, tanto no interregno democrático pós-Estado Novo como na abertura pós-1985, contribuiu para agravar o fracionamento partidário, garantindo a sobrevivência do que passou a ser denominado de “legendas de aluguel”, isto é, agremiações sem qualquer tradição e que dificilmente sobrevivem a mais de um pleito eleitoral.

A segunda refere-se à denominada “cláusula de barreira” ou “de desempenho”, isto é, a exigência de um mínimo de votação para que a agremiação se faça representar no Congresso. Por ter sido copiada apenas parte da fórmula vigente na Europa, ensejaria a diplomação de dois tipos de deputados, sedo revogada pelo STF.

Por fim, uma palavra sobre o entendimento obtuso que Milton Campos tinha da doutrina liberal, expressando com clareza um dos efeitos desastrosos da Revolução de 1930 e do Estado Novo: a dissociação da liderança liberal brasileira do curso seguido por aquela doutrina. Essa aproximação é visível no passado. Basta atentar para a atualidade, em relação ao curso seguido pelo liberalismo europeu, que Rui Barbosa manifesta ao chamar a atenção do País para a denominada “questão social”, no imediato pós-Primeira Guerra. Ou na clareza que Armando Salles de Oliveira iria expressar sobre essa matéria, nos anos 1930, comprovando a existência de alternativa contraposta às propostas nitidamente autoritárias, a exemplo do sindicalismo institucionalizado por Getúlio Vargas.

A Universidade Federal de Minas Gerais convidou-o para proferir a aula magna de abertura do ano letivo de 1966. Tratava-se não apenas de merecida homenagem, mas igualmente posicionamento da comunidade acadêmica mineira em face do caminho seguido pelo movimento de 1964, contra o qual Milton Campos acabara de rebelar-se, demitindo-se do governo. Valendo-se da oportunidade para expressar a coerência de seu ideário, deu-lhe este expressivo título “Em louvor da tolerância”. Nesse documento, contudo, encontra-se a compreensão adiante da doutrina liberal.

Depois de condenar o radicalismo, diz que “a isso foi remédio, em certa fase da história, o liberalismo”. E, prossegue: “Sê-lo-á ainda? A resposta geral é negativa, porque não há hoje, no mundo, lugar para os liberais. E é pena. A essa corrente de ideias devemos as mais altas conquistas, até o século 19. Depois, como partido político ou como organização do Estado, ela se enfraqueceu, e com o seu enfraquecimento coincidiram as formas modernas de absolutismo renovado. Em certos países, o liberalismo ficou sendo o suporte das classes dirigentes, insensíveis ou egoisticamente hostis à ascensão humana, inspirada pela filosofia cristã da justiça social e imposta pela civilização industrial. Em outros, degradou-se em aspectos secundários, como o anticlericalismo… Todavia, se os partidos liberais e a organização liberal dos Estados decaíram da missão que originariamente lhes competiu, o princípio liberal, pelo menos como estado de espírito, pode durar e sobreviver.” ( incluído na coletânea Testemunhos e ensinamentos, José Olímpio,1972, pág. 214 seguintes).

Vê-se que, em plena década de sessenta do século passado, a liderança liberal brasileira ignora o keinesianismo, a vitoriosa estruturação do Welfare no mundo desenvolvido, a capacidade da economia de mercado não só de promover a distribuição de renda como de alcançar a plena recuperação dos países da Europa Ocidental, devastados pela guerra. Como se verá a seu tempo, a retomada desses laços ainda iria tardar mais de uma década.

Milton Campos reelegeu-se senador nas eleições de 1965. Ingressou no partido situacionista, a ARENA, mas soube valer-se de sua autoridade moral para manifestar crescente discordância com o rumo seguido pelos militares, notadamente a edição do Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968, que inaugura os chamados “anos de chumbo”, quando o regime assume feição nitidamente ditatorial. Logo adiante, em face da enfermidade do presidente em exercício (general Costa e Silva), os militares obstam a posse do vice-presidente (o jurista Pedro Aleixo), fecham o Congresso e o país passa a ser governado por uma Junta Militar. De fato, a enfermidade que vitimou o presidente (agosto daquele ano) o impedia de manter-se no exercício da fundação, tanto que viria a falecer em meados de dezembro. Contudo, tratava-se de impedimento, como precisaria mais tarde Milton Campos, quando de fato o que se verificou foi a sua destituição.

A 7 de novembro seguinte, o Congresso foi reaberto para referendar a escolha do novo mandatário – general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), exerceu a presidência da República entre 1969 e 1974. Milton Campos não compareceu à sessão, ocupando a tribuna na sessão subsequente, quando fez questão de precisar o significado da sua ausência: integral discordância com o quadro vigente. Nesse discurso, condena a pretensão de proscrever a classe política, na tentativa de colocar em seu lugar uma burocracia constituída de militares e técnicos, oportunidade em que precisa o fato da destituição do presidente e da violação da ordem legal ao ser negada a posse de Pedro Aleixo.

Nessa última fase da vida, por duas vezes recusou a indicação para o Supremo Tribunal Federal (STF). Faleceu em janeiro de 1972.


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