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{ Grandes personagens brasileiros }

O conselheiro Saraiva e a reforma eleitoral de 1881

Conselheiro do império notabilizado pela lei destinada a aprimorar o sistema eleitoral vigente em sua época, José Antonio Saraiva deu nova dinâmica ao processo político no País

Antônio Paim, historiador das ideias, pensador da Cultura Brasileira e assessor da Fundação Espaço Democrático.

 

Natural do estado da Bahia, bacharelou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo. Durante algum tempo exerceu a magistratura, mas, a partir de 1853, aos 30 anos de idade, empreendeu bem sucedida carreira política. Reelegeu-se sucessivamente para a Câmara dos Deputados nas Legislaturas de 1853 a 1867. Neste último ano, seria escolhido para integrar o Senado. Presidiu as províncias do Piauí (sendo fundador de Teresina, para onde se transferiu a capital, até então em Oeiras), Alagoas, São Paulo e Pernambuco. Foi ministro da Marinha e de outras pastas.

Alcançou grande notoriedade pelo fato de haver patrocinado, na condição de Presidente do Conselho de Ministros, a reforma eleitoral de l881 que pôs fim à votação em dois turnos. Esse procedimento era então praxe generalizada, isto é, tinha lugar em diversos países. As pessoas com direito a voto e constantes do registro eleitoral votavam numa lista de personalidades locais incumbidas de escolher o candidato (a deputado ou senador) pelo respectivo distrito (na época, denominado de círculo).

A eliminação desse sistema, introduzindo-se a escolha direta do representante, correspondia a uma aspiração recorrente, isto é, desde a reforma de fins da década de cinquenta, com frequência era lembrada a necessidade da revisão. No início da década de oitenta, o Partido Liberal entendeu que não mais podia ser postergada. Seguindo a opinião de membros do Conselho de Estado, o Imperador entendia que a providência requeria emenda constitucional.

Ao aceitar o encargo de organizar o gabinete em 1880, José Antonio Saraiva informou a D. Pedro II a sua disposição de empreender a reforma eleitoral. Contudo, sua proposição seria no sentido de fazê-lo por lei ordinária não tendo encontrado qualquer oposição.

O assunto foi discutido intensamente no Senado onde se formou ferrenha oposição provinda dos conservadores. Entendia Saraiva que se tratava de atender a aspiração da maioria da opinião. Louvava-se do apoio integral com que contava em seu partido, além do mesmo verificar-se em parcela considerável dos integrantes do Partido Conservador.

A intenção do Presidente do Conselho é expressa com toda clareza nos discursos que constam da coletânea que os reúne (Perfis Parlamentares. Volume 4; Brasília: Câmara dos Deputados, 1978). Não se trata de reforma de cunho democrático. Não aspira à introdução do sufrágio universal. Quer sobretudo tornar a Câmara mais independente. Nesse particular, José Antonio Saraiva preferiu fazê-lo segundo o caminho moderado adotado pelos ingleses ao invés do modelo francês.

É muito frequente justificar-se a crítica ao parlamentarismo praticado no Segundo Reinado sob a alegação de que se baseava num sistema eleitoral que não era democrático. Acontece que, ali onde se tentava copiar o modelo inglês de governo – basicamente em reduzido número de países europeus e nos Estados Unidos – o sistema eleitoral limitava o direito de voto. Vigorava o chamado “sistema censitário”, segundo o qual o direito de fazer-se representar estava limitado aos proprietários. Essa condição era comprovada mediante a fixação de determinado nível de renda, tanto para tornar-se eleitor como para candidatar-se a cargos eletivos.

No início da segunda metade do século XIX, na França introduziu-se o que então se entendia como sufrágio universal, limitado à população masculina. Logo se verificou que a iniciativa destinava-se a estabelecer uma nova modalidade de autoritarismo: o governo através de plebiscito, criado por Napoleão III, sistema que lhe permitiu, entre outras coisas, fechar o Parlamento. Durou até 1870 quando se proclamou a III República, que iria notabilizar-se como a primeira experiência de parlamentarismo republicano. O modelo republicano, popularizado pelos Estados Unidos, era, como se sabe, presidencialista.

Deste modo, a experiência francesa serviu para dar maior credibilidade ao caminho adotado pelos ingleses para ampliar o sufrágio. Com a Reforma de 1832, o eleitorado inglês expandiu-se de 4,5% para 7,1% da população maior de 21 anos. Somente se cogitou de sua ampliação a partir dos anos sessenta. Sempre progressivas, as reformas sucederam-se nas décadas seguintes. Por esse meio, no fim do século completa-se o processo de introdução do sufrágio universal masculino (eleitorado em torno de 30% da população maior de 21 anos; a extensão às mulheres ainda iria demorar algumas décadas).

Nessa retomada do debate eleitoral, na Inglaterra, ocorrida nos anos sessenta, surgiu uma modalidade de ampliar o eleitorado que iria ser adotada na Lei Saraiva, indicando claramente que a elite imperial tinha de fato presente as recomendações do Visconde de Uruguai. Consistiam de dois princípios: 1º) para copiar instituição de outro país, cumpre conhecê-la de modo circunstanciado; e 2º) não fazê-lo servilmente, mas atentando para circunstâncias nacionais que aconselhem adaptações.

A modalidade em causa aparece no projeto de reforma submetido à Câmara dos Comuns pelo líder do Partido Liberal, William Gladstone (1809/1898), em 1866, que facultava o direito de voto aos chefes de família residentes da Capital. Provada essa condição, estariam dispensados da prova de renda, novidade que iria constar do projeto de lei apresentado por Saraiva.

A proposição de Gladstone, apresentada em 1866, viria a ser derrotada pelos conservadores, fato que daria origem a uma grande celeuma no país, vendo-se o líder do Partido Conservador – Benjamin Disraeli (1804/1881) – obrigado a adotá-la. Nas eleições ocorridas dois anos depois, em 1868, os conservadores serão derrotados, organizando-se governo liberal que reabriria o debate, aprovando-a.

Em discurso, pronunciado na Sessão do dia 26 de maio de 1880, diz expressamente: “Qual a razão pela qual adotei o censo mais alto? Porque queria que se averiguasse a renda de uma maneira mais severa e rigorosa, e esse rigor na averiguação da renda me convenceu de que um censo mais alto diminuiria consideravelmente o eleitorado no interior.” Tenha-se presente que o sistema censitário vigente (exigência de prova de renda para votar e ser votado) servia para assegurar a formação de maiorias, mecanismo imprescindível à governabilidade. Paulino José Soares tratou de modo circunstanciado do problema ao descrever, na obra que foi referida na nota precedente e comentada em texto autônomo nesta mesma página, que lhe é dedicada, a natureza das instituições imperiais.

A novidade da Lei Saraiva nessa matéria consiste em haver dispensado da prova de renda a sucessivos segmentos da população urbana, a exemplo dos seguintes: a) os oficiais do Exército, da Armada, dos corpos policiais, da guarda nacional e da extinta 2ª linha, compreendidos os ativos, da reserva, reformados e honorários; b) os que pagarem impostos e taxas gerais de diversa índole; c) os advogados e solicitadores, médicos, cirurgiões e farmacêuticos, os que tiverem qualquer título conferido ou aprovado por Faculdades, Academias, Escolas e Institutos de ensino público secundário superior e especial; d) os que exercerem o magistério particular como diretores e professores de colégios ou escolas frequentadas por 40 ou mais alunos; e) os clérigos seculares de ordens sacras; seguindo-se a enumeração para abranger os que exerciam diversas atividades no comércio (inclusive guarda-livros e primeiros-caixeiros); na navegação e os que se dedicavam à corretagem e leilões. Enfim, trata-se de uma enumeração minuciosa de que se depreende ter buscado ser exaustiva justamente para fazer emergir um novo tipo de interesse, com a intenção de ampliar a base social dos que dispunham da prerrogativa de fazer-se representar.

No texto de João Camilo de Oliveira Torres, adiante transcrito, acha-se documentado o fato de que, nas eleições realizadas naquela década de oitenta, a votação obtida pelo Partido Liberal comprova ter passado a dispor base eleitoral autônoma, junto ao eleitorado urbano. Assim, deu início a uma nova dinâmica no processo político. Se tivermos presente a forma cautelosa como os ingleses procederam à expansão do eleitorado, veremos que a Lei Saraiva, ao eliminar a necessidade da prova de renda, antes exigida para diversos setores da população urbana, trilhava o caminho que iria desembocar na democratização do sufrágio, processo esse abruptamente interrompido pela nova elite do poder que ascendeu com a República.

Com a proclamação da República, José Antonio Saraiva não se afastou da política, elegendo-se para o Senado por seu estado natal, a Bahia. Como foi indicado, faleceria em 1895, aos 72 anos de idade.

Segue-se a transcrição do texto mencionado:

 

A base social dos partidos imperiais
João Camilo de Oliveira Torres
(1916-1973)

 

Se a sociedade imperial era predominantemente agrária, não o era exclusivamente. Era um tipo medieval de sociedade, com a influência de grandes clãs rurais, mas com a presença de artesanato e do comércio nas cidades. O fato era mais visível em Minas, já que a tradição urbana do ciclo do ouro não se perdera e permanecia uma classe média sensivelmente forte, operando no comércio, em pequenas indústrias, nos serviços públicos, nas profissões liberais, no clero etc. Em qualquer época do Império, o equilíbrio campo-cidade era visível em Minas.

Certamente era reduzida essa classe média de funcionários, comerciantes, profissionais liberais e pequenos industriais, mas era visível. E convém recordar que, dentro de soluções medievais, numa comunidade do tipo tradicional, o profissional independente exercia papel decisivo. Mais ainda: numa sociedade de elites escassas, se as cidades conheciam dois ou três profissionais liberais, sua influência era imensa, porém.

No estudo da sociedade imperial, os autores costumam cometer alguns enganos sérios. Um deles, o de considerar como coisa normal ser a atividade comercial privilégio de súditos portugueses. Convém lembrar, primeiramente, que os naturais de Portugal, que estivessem no Brasil por ocasião da Independência, poderiam optar pela nacionalidade brasileira. De fato, com exceção do Rio, havia um ou outro comerciante português. Poderia citar o caso de Itabira, que estudei. Seu comércio durante todo o século XIX esteve em mãos de brasileiros.

A projeção política da estratificação social pode ser explicada do seguinte modo: embora as classes rurais fossem mais numerosas, o “censo” excluía do voto (era um princípio universal na época) grande parte dos trabalhadores rurais, e, além disso, a escravidão completava a exclusão. E como, em várias épocas se adotou o sistema de distritos, as cidades podiam ter representantes próprios, com exclusão do interior. Eleitoralmente, as cidades eram super-representadas.

É conhecido o provérbio, destinado a criticar os líderes liberais que, combatendo os abusos dos conservadores, neles incidiam, por sua vez: “Nada tão parecido a um “saquarema” como um “luzia” no poder”. Mas havia diferenças. Liberais e conservadores realmente encaravam o mundo dos valores políticos de maneira radicalmente diversa. Podemos dizer que os conservadores partiam do princípio de que o Brasil era aquilo que estava ali e, portanto, não interessava sair correndo atrás de teorias para modificá-lo. Com o tempo, por si, as coisas mudariam. Os liberais queriam que as práticas inglesas se adaptassem ao Brasil, e não só eles como também os conselheiros queriam estar em dia com a Inglaterra. O coronel Manuel Monteiro Chassim Drummond, chefe liberal de Itabira, comerciante em grosso e varejo, era leitor assíduo do The Illustrated London News e outras prestigiosas publicações britânicas, conforme tive ocasião de verificar quando da liquidação de seu espólio.

Em minha opinião, baseada em algumas pesquisas, é mesmo uma generalizada maneira de sentir da época, sendo lícito desse modo estabelecer uma relação entre a distribuição partidária e a linha de classes.

A grande lei de 1881, obra, em grande parte de Rui Barbosa, beneficiava os liberais por valorizar o eleitorado urbano. Em primeiro lugar, a eleição por distritos permitia que os grandes centros tivessem seus deputados próprios só votados nas cidades, sem interferência do eleitorado rural. Depois, pelo censo alto, que excluindo as atividades de remuneração baixa, atingia proporcionalmente mais à gente do campo, como é óbvio. Os liberais, aliás, eram conscientes de seu interesse no caso. Tavares Bastos, ao propor reformas eleitorais não cogitava de alargar o direito de voto, mas de restringi-lo. Chegara à conclusão de que no Brasil havia, de fato, sufrágio universal e que se impunha restabelecer a vigência do princípio constitucional excluindo as classes que votavam indevidamente.

Vamos comparar Minas, Rio e Rio Grande do Sul em três eleições. Em 1881 com vitória liberal: Minas teve 14 deputados liberais e seis conservadores; Rio Grande, todos liberais; Rio (Corte e província), dez conservadores e dois liberais. Em 1884 com discreta maioria liberal: eleição quase empatada em Minas com 12 liberais, sete conservadores e um republicano; Rio Grande do Sul, todos liberais (eram os “maragatos”, de Silveira Martins, dominando tudo). Em 1886, esmagadora vitória conservadora: Minas, 11 liberais e nove conservadores; Rio, 12 conservadores; Rio Grande, cinco conservadores e um liberal. Estes dados, aliás, mostram que, em Minas, pelo predomínio da população urbana, o governo de nada valia. E o Rio (província e Corte) era dominado pelos barões do Vale do Paraíba.

Conclusão: a urbanização permite o aparecimento de forças liberais autônomas e, principalmente reduzia a ação do governo nos pleitos. Nas zonas propriamente agrícolas, de latifúndio escravocrata, dominavam conservadores; em regiões mais rurais do que urbanas, pouco importando o gênero de atividade, o governo atuava largado.

(Transcrito de Os construtores do Império. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1968; Coleção Brasiliana, volume 340)


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