Antônio Paim
Paulino José Soares de Sousa (1807/1886) ensinou-nos o valor primordial da unidade nacional.
O seu papel no encontro do ordenamento institucional que contribuiu decisivamente para pôr fim à instabilidade política e à marcha do separatismo – presentes nas duas décadas subsequentes à proclamação da Independência – veio a ser amplamente reconhecido. Contudo, deixou-se de enfatizar o fato que vimos de destacar. Talvez em decorrência de um incidente histórico aparentemente irrelevante, mas que, na prática, obscureceu o verdadeiro objetivo de sua obra fundamental.
O texto que passou à história com o nome de Ensaio sobre o direito administrativo (1662) intitulava-se, na primeira tiragem (como então se designava)Ensaio sobre o direito administrativo com referência ao Estadoe instituições peculiares do Brasil(1862). Certamente por considerar esse título muito longo e cuidando de reduzi-lo optou-se por fazê-lo sacrificando o que era essencial:O Estadoe as instituições peculiares do Brasil.
Esse enunciado esquemático comporta o detalhamento que se segue.
I. O CONTEXTO HISTÓRICO
a) A situação material
Estima-se em 5,3 milhões a população de 1830 e em 7,2 milhões a de 1850. Neste último ano, o número de escravos era de 2,5 milhões, equivalentes, portanto, a 34,5% do total. Em 1872, quando se realiza o primeiro Censo, a população é de 10.112.000 e os escravos 1.511.000 (14,9%). Em 1890, o número de habitantes alcança 14,2 milhões. Entre 1872 e 1890, o aumento populacional é de 4,2 milhões de pessoas, provindo da imigração 570 mil, ou seja, a contribuição do elemento estrangeiro para aquele crescimento equivalia a 13,5%.
Em 1890, havia certo equilíbrio entre a população do Nordeste (6 milhões) e do Sudeste (6,1 milhões). No Sul encontravam-se 1,4 milhão; no Norte, 47 mil, e no Centro-Oeste, 321 mil.
O Rio de Janeiro em 1890 tinha 522 mil habitantes, sendo Salvador a segunda maior cidade (174 mil) e Recife (112 mil) a terceira. São Paulo era então um centro diminuto (65 mil habitantes), pouco maior que Belém (50 mil) ou Porto Alegre (52 mil). Manaus e Fortaleza tinham cerca de 40 mil habitantes cada.
Na década de noventa, a imigração incrementou-se significativamente, ingressando no país 903,5 mil pessoas (23,4% do crescimento populacional registrado no mesmo decênio, pouco mais de 4 milhões). Nas duas primeiras décadas do século XX chegaram ao país 940 mil imigrantes, e nos vinte anos seguintes (1921-1940), 860 mil. O fluxo declina na década de quarenta, provavelmente devido à guerra na Europa, tendo chegado ao Brasil, entre 1940 e 1950, 107 mil imigrantes.
O café implantou-se inicialmente no Rio de Janeiro e Minas Gerais, expandindo-se subsequentemente na direção de São Paulo. Este estado, em 1860, produzia apenas 9% do total brasileiro. Mas em 1890 já ofertava mais que as duas outras regiões juntas. A construção das estradas de ferro Santos-Jundiaí (1860) e Jundiaí-Campinas (1870), bem como de outros troncos, foi decisiva para a expansão da cafeicultura paulista. A exportação média era de 1,2 milhão de sacas, em 1840, 3,8 milhões em 1870 e 9,8 milhões em 1900.
No que se refere à implantação de indústrias, são inexpressivas as iniciativas da primeira metade do século. Em 1844, introduziu-se uma tarifa protecionista, para induzir a produção local de certos bens. Considera-se que nível tecnológico elevou-se em decorrência do progresso cultural e da entrada, cada vez mais maciça, de imigrantes europeus. O setor cafeeiro fornecia mais recursos, aos quais se juntaram, além dos capitais estrangeiros, os capitais liberados em decorrência da abolição do tráfego negreiro. O espírito empresarial abriu-se para horizontes mais largos. Foi a época dos grandes empreendimentos de Irineu Evangelista de Sousa, Visconde de Mauá, que compreendeu a importância da infraestrutura, lançando-se na criação de bancos, linhas de navegação, ferrovias etc. O poder público interveio também, embora tímida e insuficientemente construindo ferrovias (a partir de E. F. D. Pedro II, em 1854) e rodovias (a partir da União e Indústria, em 1856). Em 1808, existiam pouco mais de 200 fábricas, que se elevaram a 636 em 1889, distribuídas nos seguintes setores: têxtil, 60%; alimentação, 15%; química, 10%; madeira, 4%,vestuário e metalúrgica, 3%, cada; outros, 5%.
b) A situação política
Desde que chegou ao Rio de Janeiro a notícia da Revolução do Porto, mais ou menos dois meses depois de sua eclosão, em outubro de 1820, a política ocupa de maneira gradativa todos os espaços, com a peculiaridade de abrir-se à elite brasileira, até passar inteiramente às suas mãos. Desde então, as pessoas de escol não se sentiam com o direito de ocupar-se da cultura. A radicalização fez o resto, transformando o choque elétrico – de que fala Silvestre Pinheiro Ferreira (1769/21846) no seu depoimento daqueles meses iniciais que denominou Cartas sobre a revolução do Brasil– numa espécie de grande curto circuito.
Os fatos da radicalização são bem conhecidos, razão pela qual me limito a dispô-los em ordem, para destacar a magnitu¬de crescente:
• Dissolução da Assembleia Constituinte em fins de 1823;
• Confederação do Equador (1824), que convulsionou de Pernambuco ao Ceará;
• Agitação intermitente no Rio de Janeiro, inclusive com levantamentos militares em 1831 e 1832, entremeada pelo desfecho colossal que foi a abdicação de Pedro I (7 de abril de 1831);
• Guerra civil no Pará (1835-1840);
• Guerra civil na Bahia (1837-1838);
• Guerra civil no Maranhão (1838-1841);
• Revolução Farroupilha nas províncias do Sul, começada em 1835 e que só terminaria em pleno Regresso (1845).
O Ato Adicional de 1834 inclinava-se francamente por uma República, de estilo americano, ao estabelecer eleição direta de um Regente único, extinguindo ao mesmo tempo o Conselho de Estado.
As guerras civis travavam-se com grande ferocidade. Para exemplificar, na Sabinada (guerra civil da Bahia) morreram em combate 1.685 indivíduos, dos quais 594 governistas e 1.091 insurretos, com cerca de 3 mil feridos em ambos os lados.
O que há a destacar nesse conjunto é o fato do alastramento do separatismo de que a Confederação do Equador e a República Farroupilha são os exemplos mais dramáticos, a bem dizer sancionados pelo Ato Adicional.
II. O REGRESSO
A experiência republicana fracassou de maneira fragorosa. Aos fins da Regência Feijó (setembro, 1837), como indica Octávio Tarquínio de Souza, chega-se a certa saturação do monopólio e do fascínio da política. A esse propósito escreve: “O certo é, porém, que do país, pela classe que ascendera à direção política, se apoderou um cansaço de lutas tão ásperas, um grande desejo de ordem e estabilidade”.
A Regência Araújo Lima, subsequente à de Feijó, desembocou diretamente no Regresso, iniciado em julho de 1840, que lança as bases do mais longo período de estabilidade política da história brasileira.
Denominou-se Regresso o conjunto de medidas legais então votadas. O centro moderado consegue articular-se e estruturar o Partido Conservador e o Parlamento vota de maneira sucessiva um conjunto de providências cujo objetivo central consistiria em afiançar a unidade nacional, na visão dos conservadores ameaçada pela execução e interpretações vigentes sobre o Ato Adicional. Não se tratou de extinguir, mas de limitar a autonomia das províncias. Esse objetivo refletiu-se na sua própria denominação: Lei de interpretação do Ato Adicional.
A segunda medida legal seria a decretação da maioridade do Imperador, providência que objetivava permitir a restauração do Conselho de Estado. Este órgão viria a adquirir grandenomeada pelo desempenho exemplar da missão que lhe cabia. Seus membros seriam personalidades detentoras de comprovada experiência política. Cabia-lhes, quando consultado, emitir parecer sobre determinada política governamental, parecer esse que não tinha nenhum caráter de execução obrigatória.
A elite brasileira alçada ao poder aderira à doutrina da representação como sendo de interesses. A função do Parlamento consistia então em substituir o emprego da força na solução dos inevitáveis conflitos pela negociação. Semelhante entendimento facilitava, ao Conselho de Estado, a identificação do interesse nacional, vale dizer o sentido moral de sua atribuição.
Duas outras providências de ordem administrativa seriam a criação da figura do Presidente do Conselho de Ministros, que iria dar maior consistência à opção pelo regime parlamentar e a reforma do Código de Processo, medida essa na qual aparece a personalidade que pretendemos destacar.
Paulino José Soares é um dos principais artífices da solução institucional que pôs fim ao ciclo das guerras civis e iniciou, desde os começos da década de cinquenta, a plena estruturação das instituiçõesnacionais afeiçoadas ao governo representativo na forma de monarquia constitucional. Estudou em Coimbra até o quarto ano de direito, vindo a concluir o curso na Faculdade de São Paulo, após o que ingressa na magistratura, tendo sido juiz municipal da capital paulista. Desde 1837, foi deputado pelo Rio de Janeiro, em várias Legislaturas, senador do Império, em 1849, e ministro de Estado por cinco vezes, ocupando em duas a Pasta da Justiça e, nas outras, a dos Estrangeiros. Foi membro do Conselho de Estado e além da obra escrita, de grande densidade teórica, considera-se que deu importante contribuição à formulação da política exterior do Império. Consagra essa trajetória, como se dava no Império, seria o recebimento do título de Visconde de Uruguai.
Mais relevante, contudo, é o fato de que haja compreendido que o essencial, na difícil conjuntura vigente, para assegurar a plena consolidação da conquista magna de todo esse processo – a manutenção da unidade nacional– consistia em organizar a representação e, ao mesmo tempo, fixar os limites do seu aprimoramento. Conseguiu, por esse meio, institucionalizar a negociação, destinada a substituir o confronto armado. Ao fazê-lo, Uruguai valeu-se da regra que ele mesmo havia estabelecido na concepção das instituições do governo representativo. Ei-la: 1º) “Para copiar as instituições de um país e aplicá-las a outro, no todo ou em parte, é preciso, primeiro que tudo, conhecer o seu todo e o seu jogo perfeita e completamente”; e, 2º) “…não o copiar servilmente como o temos copiado, muitas vezes mal, mas sim acomodá-lo com critério, como convém ao país”. Dando conta do trabalho desenvolvido, com base nesse princípio, que batizaria com o nome de “ecletismo esclarecido”, deixou-nos um texto fundamental: Ensaio sobre o direito administrativo com referência ao estado e instituições peculiares do Brasil (1862), obra que, conforme tivemos oportunidade de destacar, desde a segunda tiragem (como se dizia na época), teve o título abreviado, preservando-se apenas a sua primeira parte. Circunstância que iria induzir a equívocos quanto ao seu conteúdo.
Exercendo na oportunidade as funções de Ministro da Justiça do primeiro governo ao qual incumbiria implementar a execução das leis que designaríamos como “regressistas” Paulino José Soares indica que a alteração fundamental introduzida no Código de Processo diz respeito à eliminação das eleições para Juízes de Paz e a revisão de suas atribuições. No livro antes referido, reeditado, após a primeira tiragem, com o título de Ensaio sobre o direito administrativo, Paulino José Soares examina em detalhes os fundamentos da reforma que ajudara a conceber, incumbindo-se de levá-la à prática.
Mostra, em primeiro lugar, que a herança legal recebida de Portugal inseria uma grande confusão entre a Administração e o Poder Judiciário, decorrente, aliás, como indica, da circunstância de tratar-se de monarquia absoluta, alheia à divisão dos Poderes. Segundo aquela legislação, os juízes exerciam muitas funções administrativas.
Antes de introduzir as reformas pertinentes ao novo regime, isto é, adequar a monarquia tradicional aos institutos do sistema representativo, competia, segundo Uruguai, separar inteiramente as funções administrativas das judiciárias para em seguida delegá-las aos poderes competentes. Nada disso se fez, cuidando-se tão-somente, segundo suas próprias palavras, de “tornar a autoridade judicial, então poderosamente influente sobre a administração, completamente independente do poder administrativo pela eleição popular. O governo ficou, portanto, sem ação própria sobre agentes administrativos também dos quais dependia sua ação, e que, todavia, eram dele independentes”. Os Juízes de Paz, “filhos da eleição popular, criaturas da cabala de uma das parcialidades do lugar”, foram cumulados de atribuições, na esfera criminal e outras, abrangendo, inclusive, aquelas relacionadas com o processo eleitoral.
“Sucedia vencer as eleições uma das parcialidades em que estavam divididas as nossas Províncias”, prossegue Uruguai, “a maioria da Assembleia Provincial era sua. Pois bem, montava o seu partido e, por exemplo, depois de nomeados para os empregos e postos da Guarda Nacional homens seus, fazia-os vitalícios. Amontoava os obstáculos para que o lado contrário não pudesse para o futuro governar. Fazia Juízes de Paz seus, e Câmaras Municipais suas. Estas autoridades apuravam os jurados e nomeavam, indiretamente, por propostas, os Juízes Municipais, de Órgãos e Promotores. Edificava-se assim um castelo, inexpugnável, não só para o lado oprimido, como ainda mesmo para o Governo Central”.
Quer dizer, um instrumento do novo regime – a eleição – fora colocado a serviço da dominação de uma das facções em luta, contrariando frontalmente suas verdadeiras funções, que eram a seleção do representante apto à defesa dos interesses, mas obrigado o fazê-lo mediante a negociação em vez da imposição.
Nas reformas do período do Regresso aboliu-se a eleição do Juiz de Paz. As instituições do Judiciário e da polícia passaram então a subordinar-se ao Poder Central. Criavam-se as condições para a organização da justiça em bases definitivas, assegurando-lhe a possibilidade de ser de fato independente. A esse respeito escreve Uruguai: “A Lei de Interpretação do Ato Adicional, e a de 3 de dezembro de 1841 (Código de Processo), modificaram profundamente esse estado de coisas. Pode por meio delas ser montado um partido, mas pode também ser desmontado quando abuse. Se é o governo que monta, terá contra si, em todo o Império, todo o lado contrário. Abrir-se-á então uma luta vasta e larga, porque terá de basear-se em princípios, e não na luta mesquinha, odienta, mais perseguidora e opressiva, das localidades. E se a opinião contrária subir ao Poder, encontrará na legislação meios de governar.
Se quando o Partido Liberal dominou o Poder no Ministério de 2 de fevereiro de 1844, não tivesse achado a Lei de 3 de dezembro de 1841, que combateu na tribuna, na imprensa e com as armas na mão, e na qual não tocou nem para mudar-lhe uma vírgula, se tivesse achado o seu adversário acastelado nos castelos do sistema anterior, ou teria caído logo, ou teria saltado por cima das leis. Cumpre que na organização social haja certas molas flexíveis, para que não quebrem quando aconteça, o que é inevitável, que nelas se carregue um pouco mais.
Assim, nos começos da década de 40, foram estabelecidas as regras segundo as quais os segmentos da sociedade que podiam fazer-se representar tinham assegurado esse direito, tornando-se sucessivamente desnecessário o recurso às armas. Começa o ciclo em que ganham forma os instrumentos capazes e proceder à negociação e sancionar a barganha, em primeiro lugar os Partidos Políticos, então simples blocos parlamentares, como nos demais países em que se ensaiava a prática do sistema representativo. Eram, porém, capazes de fazer valer os interesses dos grupos sociais, que tinham acesso à representação. O aprimoramento desta seria um tema que não mais se excluiria da ordem do dia.
O aprimoramento em causa, que se estendeu por mais de quarenta anos – interrompendo-se, afinal, pelo advento da República – compreendia a delimitação rigorosa da base territorial abrangida pelo mandato do representante, o problema da representação da minoria e, finalmente, a ampliação da base social possuidora do direito de fazer-se representar.
Além da obra antes referida, na qual comenta e justifica a maneira como se processou a implantação no país das instituições básicas do governo representativo, Paulino José Soares preocupou-se com a adequada estruturação da administração provincial, reunindo em volume os estudos que dedicou ao assunto (Estudos práticos sobre a administração das províncias do Brasil – 1865). Editou e comentou o Código do Processo Criminal de primeira instância, que promulgou quando Ministro da Justiça, em 1842, com o propósito que se referiu. Incumbiu-se da elaboração do Código Criminal (1861). Muitos de seus discursos chegaram a ser impressos.
Por fim, como membro do Conselho de Estado, desde 1853, contribuiu para estruturar os procedimentos do órgão que se tornaria o fiador do exercício do Poder Moderador.
Referências bibliográficas
CARVALHO, José Murilo de (Organizador). Visconde do Uruguai. Rio de Janeiro, Editora 34, 2002 (Coleção Formadores do Brasil).
COSER, Ivo. Opensamento político do Visconde de Uruguai e o debate entre centralização e federalismo no Brasil,1822/1866. Instituto Universitário do Rio de Janeiro, 2007.
TORRES, João Camillo de Oliveira. Construtores do Império. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1968.