Ricardo Vélez Rodríguez veio ao Brasil no início da década de setenta para fazer curso de pós-graduação (mestrado) em filosofia. Na época era um jovem professor universitário em Medellín, Colômbia (estava então com menos de 30 anos, nasceu em 1943). Numa seleção rigorosa, obtivera bolsa da OEA. O chefe do Departamento de Filosofia daquela instituição era um brasileiro (Armando Correia Pacheco), que pretendia estimular o intercâmbio latino-americano e imaginava que podia fazê-lo no curso que estava organizando, dedicado à filosofia brasileira. Acontece que essa intenção conflitava abertamente com o nosso projeto, que era um dos legados de Luís Washington Vita, recém-falecido (1968) e empenho pessoal do prof. 654, entendendo que aquela era uma das missões importantes do Instituto Brasileiro de Filosofia. De modo que o jovem Ricardo viu-se constrangido a arquivar os sonhos de intercâmbio e estudar filosofia brasileira.
O projeto de investigação do positivismo no Brasil ia sendo delineado simultaneamente. Adotou-se uma regra geral que compreendia determinar em que consistia a filosofia da ciência de inspiração positivista; a filosofia da educação; a filosofia política etc. Ricardo interessou-se pelo tema da política. Procurei, francamente, desestimulá-lo. Inexistia qualquer inventário. No caso de uma figura que seria central – Júlio de Castilhos –, deixara poucos escritos, requerendo o seu estudo pesquisa em jornais da época, nos quais colaborara ao longo da vida, e levantamento da legislação que elaborara diretamente e na qual consubstanciara seu entendimento do que seria o regime positivista.
Teimosamente, o jovem colombiano recusou todas as ponderações e lançou-se à tarefa, o que nos permitiu constatar sua capacidade de pesquisa e facilidade de escrever. Em fins de 1973, apresentava-nos dois grossos volumes sob o título geral de A filosofia política de inspiração positivista: o castilhismo. Tratando-se de novidade absoluta, teve que anexar os documentos de que se louvava para formular a sua tese de mestrado, aprovada com entusiasmo pela banca então constituída.
Como nos mostra Ricardo Vélez ao longo de seu magnífico estudo, o castilhismo não corresponde a uma transposição mecânica da doutrina política de Comte. Júlio de Castilhos terminou a Faculdade de Direito de São Paulo muito jovem, em 1881, quando tinha apenas 21 anos de idade, formando seu espírito segundo os cânones positivistas. Começou na década anterior a difusão da sociologia de Comte, antes conhecido, sobretudo, como matemático na Real Academia Militar. Segundo aquela sociologia, a evolução social era determinada e previsível. Preparar o advento do estado positivo, etapa final da humanidade, seria obra de uns quantos apóstolos, mestres de uma nova Igreja, profundos conhecedores da ciência. Nessa obra, a família tem igualmente lugar de destaque, sobretudo as mulheres. O novo sistema político será uma ditadura republicana.
Da doutrina de Comte, Castilhos retirou a ideia básica de que o governo passava a ser uma questão de competência (em vez de vir de Deus, como imaginavam alguns monarcas, ou da representação, como ensinou Locke e, entre nós, Silvestre Pinheiro Ferreira e os grandes artífices do Segundo Reinado, o poder vem do saber). Ora, se estou de posse desse saber, porque preciso passar a fase do que entre nós chamou-se de positivismo pedagógico ou ilustrado, isto é, de algo que poderia ser denominado de “educação das consciências” como etapa prévia à implantação do estado positivo? Espírito prático, dotado de grande poder de liderança, combativo, tenaz e obstinado, Castilhos decidiu-se por uma experiência original: utilizar o poder político para transformar a sociedade, ao invés de esperar pela transformação deste e só então marchar na direção do regime perfeito. Em síntese, optou por exercer diretamente a tutela da sociedade.
Ricardo Vélez, assim, caracteriza o essencial no castilhismo: “enquanto para o pensamento liberal o bem público resultava da preservação dos interesses dos indivíduos que abrangiam basicamente a propriedade privada e a liberdade de intercâmbio, bem como as chamadas liberdades civis, para Castilhos e bem público ultrapassava os limites dos interesses materiais dos indivíduos, para tornar-se impessoal e espiritual. O bem público se dá na sociedade moralizada por um Estado forte, que impõe o desinteresse individual em benefício do bem-estar da coletividade”. Assim, a função estatal passa a ser moralizar a sociedade, torná-la virtuosa, na acepção positivista do termo. Nesse contexto, o interesse pessoal constitui pura e simples imoralidade.
A prática castilhista seria institucionalizada por Borges de Medeiros (1863-1961), que introduziu a prática das reeleições sucessivas até levar o estado à guerra civil no começo da década de 1920, o que exigiu a intervenção do governo federal e a reforma da Constituição (1926).
Velez Rodriguez mostra-nos como Getúlio Vargas formara seu espírito na república positivista do Rio Grande do Sul, e tendo sido escolhido para ser o seu representante no Parlamento, teve a possibilidade de reeducar-se, sobretudo no linguajar.
Joaquim Camelo, diretor da Editora do Senado, em boa hora incluiu o livro de Velez no seu programa editorial. O livro intitulou-se “Castilhismo uma filosofia da República”.
Permito-me transcrever o inteiro teor do retrato que Velez nos proporciona do autoritarismo de Vargas:
“João Neves traçou um esboço da personalidade de Getúlio, no qual o caracteriza como dono de certa autoridade natural unida a um ar acolhedor. Tal caracterização talvez reflita mais a atitude do jovem são-borjense que procurava ascender nos quadros políticos da província, porque, se atentarmos à evolução posterior de sua vida pública, perceberemos que se tratava – como Castilhos – de uma personalidade talhada para a ditadura.
Porém, o autoritarismo de Getúlio não era mero dote natural. Como nos antecessores castilhistas, deitava raízes em suas convicções. Quando se encontrava no poder, tudo girava ao seu redor, de forma semelhante a como Castilhos ou Borges de Medeiros concentravam em si o exercício do governo. A única diferença que poderíamos estabelecer entre o autoritarismo getulista e o dos antepassados castilhistas é a mesma que víamos entre estes e Pinheiro Machado: mudava apenas o cenário da ação, conservando-se intacta a procura do poder pessoal total.
Profundamente maquiavélico, mostrou o seu autoritarismo especialmente no combate sem trégua que durante a vida inteira desencadeou contra o governo representativo. Como acertadamente afirma Costa Porto, Getúlio tinha “(…) alergia pelo fenômeno eleitoral (…), interessando-lhe mais o apelo aos golpes do que o recurso ao veredito das unas”.
Getúlio não sabia se colocar na oposição, nem tampouco aceitá-la; é aspecto ressaltado por João Neves: “A oposição, aliás, também não era o forte de Getúlio Vargas (…). A oposição que gostava de fazer era aos adversários, quando se achava no poder. Aí, sim, fustigava-os sem quartel. Quem lesse seus discursos teria a impressão de estar diante de um tribuno da plebe desancando o cesarismo!”
Entre esta atitude e a opinião castilhista de que aos adversários políticos o que resta é uma humilde e sincera penitência, não há nenhuma distinção. O autoritarismo não admite negociações nem participação de outros no poder. Conquistando-o, só há uma alternativa: perpetuar-se nele. Como afirmava Raul Pila, referindo-se a Getúlio: “Uma vez na cadeira presidencial, dela não sairia senão à força”. Caso se perdesse o posto, a tradição castilhista assinalava duas alternativas: ou lutar para reconquistá-lo, sem dar trégua e aniquilando os adversários – a alternativa de Castilhos em 1892 e, em parte, a de Borges de Medeiros depois de 1930 – ou morrer. Getúlio optou pela segunda. Ambas, entretanto, são idênticas na origem: a impossibilidade, para o governante autoritário, de tornar-se oposição.
Muitas seriam as considerações que poderíamos fazer sobre a inspiração castilhista na atuação de Getúlio desde a primeira magistratura da Nação. Porém, esta reflexão nos levaria muito longe e ultrapassaria os limites que nos impusemos. Apesar disso, afirmaríamos que Getúlio encarnou, como presidente da República, a imagem autoritária que Borges de Medeiros traçara do primeiro mandatário: “Ele é o centro do sistema, é o líder da Nação, o supremo diretor político e administrativo da União. Logo, é do presidente que há de dimanar sempre o maior bem ou o maior mal para a República”.