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{ ARTIGO }

Evidência científica e bom senso na segurança pública

Não é uma questão de rigor ou leniência com os criminosos, mas de adotar políticas de segurança que funcionam ou não funcionam, escreve o sociólogo Tulio Kahn

Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático

Edição: Scriptum

 

Em 2023, um novo governo assume a responsabilidade pela condução da segurança pública em São Paulo e o cenário não é dos mais promissores. Após as quedas observadas em 2020 e 2021, principalmente em razão das mudanças de rotina provocadas pela pandemia, muitos indicadores criminais voltaram a subir, afetando a qualidade de vida e a sensação de segurança dos paulistas. Em alguns casos, os crimes apenas retomaram a tendência anterior à pandemia, mas em outros já ultrapassaram esta tendência. Neste artigo, faço uma rápida análise de tendências, utilizando as séries de dados disponibilizadas pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, que cobrem o período janeiro de 2001 a outubro de 2022.

Os roubos têm uma trajetória de crescimento no Estado, nas últimas duas décadas. Este crescimento foi mais intenso entre 2014 e 2017, anos de deterioração econômica, retornando à tendência anterior entre 2018 e 2019. Com a pandemia, os roubos despencam acentuadamente nos dois anos seguintes. Com cerca de 21 mil casos em outubro último, os roubos estão bastante próximos dos patamares de 2019, pré-Covid. Se excluirmos os anos de pandemia, a variação dos roubos de outubro de 2022, comparada a outubro de 2019, é de apenas -0,9%. Caso típico de “retorno à média” depois de um choque exógeno, como foi a covid.

Os furtos apresentam uma trajetória ligeiramente declinante no Estado, depois do período inicial de alta entre 2001 e 2006. A partir daí, observamos um declínio, com os furtos passando da casa dos 50 mil casos mensais para cerca de 40 mil em 2019. A pandemia derruba os furtos acentuadamente, chegando a menos de 21 mil casos em abril de 2020. Mas com o final da pandemia, os furtos apresentam uma forte tendência de crescimento, voltando ao patamar dos 50 mil casos observados entre 2005 e 2006. O aumento é de 13% se comparamos outubro de 2022 com o mesmo período de 2019, pré-pandemia. Neste caso não houve apenas um “retorno à média”, mas uma “mudança de nível”, para a casa dos 50 mil mensais. É preciso lembrar que os furtos são bastante sensíveis à notificação e que durante a pandemia as notificações pela internet cresceram, em diversos Estados.

Os roubos de veículos tem um ciclo de queda acentuada entre 2001 e 2007, seguido de um ciclo de crescimento que vai até 2013, quando atinge quase 10 mil casos por mês. A partir de então, voltam a cair para a faixa de 4 mil casos, até o final de 2019. Com a pandemia, a série atinge o nível mais baixo, com menos de 2 mil casos por mês. Desde então, voltou a crescer progressivamente, voltando novamente ao patamar dos 4 mil casos mensais. O aumento com relação a outubro de 2019 é de 3,2%. De todo modo, há uma clara interrupção do virtuoso período de queda linear iniciado por volta de 2014. Não está claro ainda se se trata de um retorno à média ou da formação de um novo patamar, mais elevado.

Os furtos de veículos caem entre 2001 e 2007, quando começam um período de alta que vai até a crise econômica de 2014, quando superam a marca de 11 mil casos mensais. Dai em diante observamos um período de queda até 2019, quando estacionam no patamar dos 7 mil casos. A pandemia derruba os furtos de veículos para o nível de 4 mil casos, mas com a retomada das atividades econômicas e sociais observamos um rápido retorno aos níveis de 2018, por volta dos 8 mil casos. Excluindo os anos da pandemia, vemos um crescimento de 7,5%, comparando outubro de 2022 a 2019.

Os roubos de carga mostram um crescimento linear e acentuado entre 2001 e 2016, quando passam de uma média de 350 casos mensais para cerca de 1.000. A partir de 2017, começam a declinar também de forma acentuada, e no período da covid voltam ao patamar dos 400 casos mensais, mesma média dos anos 2004-2008. Os registros de roubo de carga têm oscilado entre 400 a 700 casos desde então, interrompendo o período de queda iniciado em 2017.

Ainda no que tange ao crime organizado, os roubos a banco praticamente desapareceram do Estado de São Paulo. Depois de quadruplicarem entre 2001 e 2006, os roubos a banco declinam sistematicamente. Desde 2018 o Estado convive com oscilação entre 0 a 3 casos por mês. Em nítido processo de queda estão também os latrocínios, que tiveram seu apogeu em dezembro de 2001, com 67 casos. Caem na década seguinte até o patamar de 9 casos em 2001. Têm um aumento durante o período 2012 a 2017, quando se mantiveram entre os 20 a 40 casos mensais. Desde então observamos uma nova fase de queda, cujo ponto mínimo é agosto de 2022, com 7 casos. Vendo de outro modo, no início da década de 2000 tínhamos um latrocínio a cada 430 roubos no Estado e nos últimos anos a média subiu para um latrocínio para cada 1400 roubos, tornando-se um fenômeno mais raro.

Os estupros permitem uma análise apenas a partir de 2009, pois a mudança da legislação tornou incomparável o tipo penal com relação ao período anterior. Assim como os roubos, a tendência é de aumento tênue, mas crescente, em todo o período, embora seja necessário um cuidado adicional na interpretação, uma vez que o estupro é altamente sensível a mudanças na notificação de casos. O Estado passa de uma média de 800 casos, em 2010, para cerca de 1000 casos mensais em 2022, mas não é despropositado argumentar que possa ter ocorrido em parte por uma melhora na notificação dos registros.

A queda dos homicídios em São Paulo é um impressionante fenômeno, um caso de sucesso na literatura criminológica nacional e internacional e que começa a ser observado desde os anos 2000. Se no início da série histórica vemos uma média de 1000 casos de homicídio por mês, em 2019 esta média tinha se reduzido para 230 casos. Trata-se de uma queda linear, interrompida apenas na gestão Ferreira Pinto, em 2012, quando a média aumentou para 400 casos. O Estado parece enfrentar obstáculos para diminuir esta média, que continuou ao redor dos 230 casos por mês nos últimos anos.

Ao contrário dos crimes patrimoniais, a pandemia não afetou significativamente os homicídios. O crescimento entre outubro de 2019 e 2022 é de 6,7%. Chama a atenção nestes últimos meses que os homicídios têm crescido, não obstante a redução no volume de apreensão de armas, indicadores que costumam estar correlacionados em São Paulo. A razão entre homicídios consumados e tentados é um indicador que utilizamos para avaliar quando os homicídios num determinado local estão mais relacionados a motivações interpessoais ou mais relacionados à dinâmica criminal. Notamos também um ligeiro aumento da razão homicídio consumado/tentado depois da pandemia. Em conjunto, estas duas evidências sugerem um recrudescimento dos homicídios perpetrados pelo crime organizado em São Paulo nos últimos anos, estancando o processo de queda das últimas décadas.

Os homicídios tentados, que vinham em franco processo de queda entre 2001 e 2020, parecem também ter se estabilizado nos últimos dois anos, interrompendo o processo de queda. Algo bastante semelhante ocorre com as lesões corporais dolosas, que caem entre 2001 e 2020, mas se estabilizam a partir de então na casa dos 10 mil casos mensais. Os três indicadores de crimes contra a pessoa, neste sentido, são congruentes, mostrando, todos, interrupções nas tendências de queda.

Merece menção a tendência no indicador tráfico de drogas, que é tanto um indicador da quantidade de drogas em circulação como da atividade policial de combate. Não obstante a dificuldade interpretativa sobre seu significado, os dados mostram um crescimento explosivo dos registros de tráfico de drogas no Estado entre 2001 e 2018, passando de 800 para cerca de 4000 casos por mês. A partir de 2019 vemos o início de um período de queda acentuada. A queda chega a 36% se compararmos 2022 com outubro de 2019, pré-pandemia. Fenômeno semelhante ocorre no Rio de Janeiro, onde os registros de tráfico crescem de forma acentuada até 2016, quando então passa a declinar, passando de 1.200 para aproximadamente 800 casos mensais.

Merecem menção neste breve balanço a queda da letalidade policial nos anos recentes, em boa parte resultado da adoção das câmaras nos uniformes da Polícia Militar, e o crescimento acelerado dos crimes digitais, especialmente das fraudes pela internet e estelionatos, frequentemente praticados após a subtração do aparelho celular, alvo número 1 dos assaltantes.

O momento é, portanto, delicado para a nova gestão, num contexto em que a economia ainda patina, pressionando os crimes patrimoniais. Tanto mais importante será a eficiência da gestão neste contexto. Hora de deixar as ideologias e o palanque das redes sociais de lado e de adotar o equilíbrio, o uso das evidências científicas e o bom senso na elaboração e condução das políticas de segurança. Não é uma questão de rigor ou leniência para com os criminosos, mas de adotar políticas de segurança que funcionam ou não funcionam. E funcionam dentro, é claro, do estrito rigor da lei e das garantias do estado democrático de direito.

As polícias de São Paulo são profissionais e legalistas. Gestores que violam estes princípios e diretrizes não costumam prosperar por aqui.

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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