Antonio Paim, filósofo e historiador (*)
A originalidade do Estado Moderno consiste na obra de centralização do poder de que se desincumbiu, sem precedentes na história do Ocidente. Trata-se de um processo que se estendeu no tempo, sem embargo do que seguiu seu curso de forma inexorável.
Ainda que tenham surgido Estados nacionais (casos de Portugal e Suíça) antes do século XVI, associados ao processo de formação das nações a sua estruturação, na Europa só ganharia impulso com o término da Guerra dos Cem Anos, entre a França e a Inglaterra, ocorrida em 1453. Até então, como dizia a historiadora francesa Regine Pernoud, existiam, alternadamente, monarquias anglo-francesas ou franco-anglicanas.
O projeto de erigir Estado nacional autônomo, com rigorosa delimitação de fronteiras, é obra iniciada, na França, por Henrique IV (1553-1610). Ele ascendeu ao poder em 1589. Protestante, para ganhar o trono e pacificar o país renunciou a essa condição, tendo se tornado famosa a maneira como a anunciou: “Paris vale uma missa”. Deu, assim, início à dinastia dos Bourbon que, além do mais, seria a origem da Casa de Orleans, erigindo assim uma dinastia que governou ininterruptamente até a Revolução Francesa e, depois desta, ainda disputou o poder no século XIX.
Na Inglaterra, Henrique VIIII (1491-1547) desempenharia idêntico papel. Ascendeu ao poder em 1509 e, em 1543, seria proclamado chefe da Igreja Anglicana, rompendo com o Vaticano, principal obstáculo à autonomia dos reis. O papado, por sua vez, saíra combalido do embate com os protestantes, tendo assistido à persistente redução de sua área de influência após o reconhecimento, pelo Sacro Império, do direito de principados alemães de dispor de igrejas reformadas (Paz de Augsburg, de 1555).
Ainda que não haja desaparecido de todo as ambições imperiais englobando toda a Europa (antípoda do Estado nacional), como se verá da emergência de Napoleão, no século XVIII, o Estado Moderno é a grande realidade. Segundo indicamos precedentemente, o Estado Moderno corresponde a uma obra de centralização do poder político em mãos de um único grupo de instituições, criação original do Ocidente.
No mundo antigo – embora não se possam fazer afirmações peremptórias nesse sentido, tantas foram as mediações que se estabeleceram entre suas obras e o acesso a elas de parte da cultura ocidental –, é lícito admitir que as famílias preservaram sempre grandes fatias do poder, inclusive no que se refere à aplicação da justiça. No período feudal, a autonomia local é um fato inconteste. Mesmo quando o contrato de vassalagem adquiriu plena formalização, os príncipes asseguraram-se vários direitos, entre estes o de fazer a guerra no próprio território em que os senhores guardam fidelidade a um único monarca.
O aludido processo de centralização não é impeditivo ao exercício do poder em bases democráticas, consoante a história iria comprovar, no ciclo subsequente à Revolução Gloriosa de 1688. Segundo Max Weber (1864-1920), o aludido processo tem pré-condições, entre as quais sobressai a conquista do monopólio da violência legalizada. Jean Bodin (1520-1596), integrante da plêiade de pensadores autoritários que contribuíram para a constituição dessa nova estrutura social, tendo em vista o Estado Moderno, já teria oportunidade de escrever: “A República é o governo em que as reações entre pessoas e instituições estão submetidas à soberania do Estado”.
Max Weber inovou na análise das formas de dominação. Considerou-as tomando três princípios de legitimação, a que correspondem determinadas estruturas: 1) a dominação legal; 2) a dominação tradicional; e 3) a dominação carismática. Na dominação tradicional estabeleceu dois tipos básicos: o patrimonialismo e o feudalismo.
Como se sabe, Weber não pretendia fazer história, mas, levando-a em conta, isto é, partindo da experiência histórica, recolher elementos para configurar tipos-ideais aptos a explicar a realidade social, não tomada em bloco, mas considerando fenômenos passíveis de delimitação acabada, a exemplo do que faz qualquer ciência.
As formas tradicionais da dominação distinguem-se da moderna pelo modo de sua legitimação, predominando nesta última os procedimentos legais. Contudo, entre os tipos tradicionais aparece, na Europa, o feudalismo do soberano, o que exige o estabelecimento de normas, direitos e deveres nas relações entre as duas instâncias.
Assim, o feudalismo ocidental ofereceu a matriz primitiva a partir da qual se chegou à ideia do pacto político como fundamento da distribuição de poderes, tomada como ponto de referência para a modernização da estrutura tradicional típica, o Estado patrimonial. Neste, as relações de domínio sedimentam-se como o prolongamento dos poderes do patriarca familiar.
Weber afirmou que “a organização política patrimonial não conhece nem o conceito de competência nem o da autoridade ou magistratura no sentido atual, especialmente na medida em que o processo de apropriação se difunde. A separação entre os assuntos públicos e privados, entre patrimônio público e privado, e as atribuições senhoriais públicas e privadas dos funcionários desenvolveu-se só em certo grau, dentro do tipo arbitrário, mas desapareceu”.
Mais explicitamente: “O Estado patrimonial é o representante típico de um conjunto de tradições inquebrantáveis. O domínio exercido pelas normas racionais se substitui pela justiça do príncipe e seus funcionários. Tudo se baseia então em considerações pessoais. Os próprios privilégios outorgados pelo soberano são considerados provisórios”.
(*) Este texto faz parte da série de 10 artigos escritos por Antônio Paim no início de 2021, pouco antes de sua morte
Revisão final de Rogério Schmitt