Antonio Paim, filósofo e historiador (*)
Decorreram alguns séculos até que se verificasse a sedimentação das tribos, chamadas bárbaras, invasoras do território que equivaleria à atual Europa Ocidental. Na época, como se sabe, era parte do Império Romano, que desapareceu de cena na altura do século V. Basicamente, a sedimentação em apreço dá-se em decorrência de sua conversão ao cristianismo.
Quando esta ocorre, do século IX à metade do século X, tem lugar um segundo ciclo de invasões. Desta vez, efetivado por outros personagens, afinal vencidos, entre a segunda metade do século X e o século XI, seguindo-se a sua incorporação à nova civilização cristã.
Dos séculos XII ao XIV floresceu plenamente a chamada Idade Média europeia. Pode-se tomar como referência os anos de 1175 a 1244, período da vida de Miguel Scot, como sendo aquele em que os textos gregos são traduzidos ao latim e reintroduz-se a discussão do pensamento antigo entre os cristãos.
O conhecimento do pensamento grego antigo começa pelos livros relacionados à medicina clássica (Hipócrates e Galeno). Segue-se a tradução das obras de caráter científico, preservadas no Museu de Alexandria, e também de eruditos árabes que dão a conhecer o número arábico, conhecimento esse essencial ao futuro desenvolvimento, no Ocidente, do cálculo matemático.
A par do conhecimento das obras relacionadas à ciência antiga, igualmente tem lugar a tradução da obra filosófica de Aristóteles. A descoberta compreende também autores romanos que irão dar notícia do direito e da política.
Ainda no século XII, inicia-se, na Itália, a formação das primeiras universidades, onde tem lugar o estudo sistemático do direito romano que viria a produzir grande impacto, progressivamente adotado em substituição ao direito consuetudinário vigente. O impacto das instituições políticas romanas seria muito posterior.
Quanto à filosofia aristotélica, desde logo teria lugar a sua interpretação segundo cânones cristãos, o que a tornaria dominante durante vários séculos.
A história antiga destaca o que se convencionou denominar de milagre grego. Com efeito, num período considerado curto em termos históricos, da ordem de século e meio, atribuiu-se à cultura uma determinada configuração que acabaria sendo tomada por base para erigir-se a cultura ocidental.
A esse propósito, cumpre desde logo advertir que não tem cabimento a suposição de que os gregos nos teriam legado o saber em sua totalidade. Na verdade, em termos de conteúdo, em que pese tenha adotado a denominação e a própria classificação legada pelos gregos, a cultura ocidental é de todo original.
O legado grego proporcionou-nos a compreensão de que o espírito humano é capaz de abstrair-se tanto da realidade como de aspectos do pensamento que não considere essenciais. A isto precisamente corresponde o processo de elaboração conceitual. Quanto ao modo de operá-lo, proporcionaram um método (chamado socrático, para consignar o autor, Sócrates, 470-399 a. C.) que seria subsistido tanto na Idade Média como na época moderna.
Na Grécia formulou-se uma primeira classificação dos tipos de saber. A ideia central seria consignar a distinção entre o que a modernidade iria denominar de saber especulativo (que comporta diversidade de pontos de vistas e hipóteses) e o conhecimento científico, de validade universal.
A par disto, cultivaram diversas disciplinas, cuja denominação seria preservada, como filosofia, lógica, ética, política, medicina etc. No que respeita à política, surgiram no Ocidente várias fantasias acerca da democracia ateniense, razão pela qual tornou-se tema relevante.
Os gregos criaram também diversos tipos de manifestação artística, como a tragédia, a poesia, a escultura etc. Na tragédia, produziram textos imorredouros, tomados como inspiração por expressivos autores modernos. A escultura também exerceu grande influência no Ocidente.
A investigação das presumíveis causas do surgimento do chamado milagre grego produziu diversos estudos, em geral procurando relacioná-lo às reformas que ali tiveram lugar. No essencial, essas reformas terminaram por enfraquecer o poder da família patriarcal, justamente o que estabeleceu a diferenciação entre a Grécia e seus vizinhos, na Antiguidade.
Tenha-se presente que a sobrevivência dessa estrutura social perpetuou o atraso (caso do Afeganistão, por exemplo). Na época, as famílias compreendiam mais de uma geração vivendo sob a direção do patriarca, justamente a figura que, na condição de cidadão, detinha os poderes econômico e político. Na Grécia Antiga, os estrangeiros eram denominados de bárbaros. Essa nomenclatura explica que a tivessem merecido as invasões de outros povos, evidenciando que não dizia respeito a nível cultural.
Outro aspecto essencial do legado antigo, o direito romano foi adotado como modelo na maioria dos países ocidentais. Somente os povos anglo-saxões preservaram o direito consuetudinário.
Sobre o processo de formação do direito romano e suas características essenciais, reza a tradição que, por volta do século VI a.C. tiveram lugar grandes lutas entre patrícios e plebeus, durante as quais estes lograram diversas conquistas entre as quais o tribunus, que originalmente era o magistrado romano incumbido da defesa dos direitos de determinada comunidade. Subsequentemente, o Senado foi instado a redigir as leis comuns a patrícios e plebeus, que teriam sido gravadas em 12 placas de bronze. Esse documento passou à história com o nome de Lei das Doze Tábuas.
Sob Adriano deu-se início ao trabalho dos jurisconsultos, especialistas incumbidos de ordenar os milhares de textos jurídicos acumulados pela experiência de muitos séculos a ser acrescido à Lei das Doze Tábuas. Tais textos consistiam não somente das leis regularmente aprovadas, mas também dos decretos imperiais e, sobretudo, dos éditos dos pretores, vale dizer, do que modernamente chamaríamos de jurisprudência, já que os pretores eram uma espécie de juízes. Essa codificação teve continuidade até o século VI, conjunto que corresponde ao direito romano.
O direito romano, além de criação original, revelou ser uma ordenação, a bem dizer, perene desse aspecto da vida social e de sua estruturação em forma considerada definitiva. Os romanos criaram o direito civil (jus civile), inicialmente entendido como adstrito aos romanos.
Em contato com outros povos e esbarrando com costumes e práticas diversas, dá-se maior universalidade àqueles princípios, ao mesmo tempo em que são lançadas as bases, através do jus gentium, tanto do direito privado das gentes como do primeiro núcleo do direito internacional privado. Embora sem desprender-se da experiência concreta, como viria a ocorrer nas discussões subsequentes, também está presente a ideia do direito natural.
Em matéria de política, durante a Revolução Francesa algumas das criações romanas chegaram a incendiar a imaginação de muitos líderes. Assim por exemplo, a ideia de que a organização do Império pode (ou deve) ser precedida da figura que se chamou de Cônsul chegou a ser adotada.
É nessa fase que se toma conhecimento da existência do Senado como câmara revisora ou para proporcionar acesso ao Legislativo de entes da federação, nessa última forma incorporada ao governo representativo pela Revolução Americana.
Repetindo a tradição dos impérios orientais, que conhecia por integrarem o arco de suas guerras de conquista, Roma preservou a instauração de uma religião de Estado. Por sua relevância (e caráter conflituoso) na história do Ocidente, deve ser igualmente considerado o que seria relevante em matéria político-institucional.
Originariamente, as instituições políticas de Roma guardavam certas semelhanças com as que se organizaram nas cidades-Estado gregas. Assim, além do mandatário do Estado, existia um conselho constituído pelos chefes das grandes famílias, que se chamava Senado. A chefia do Estado, exercida hereditariamente, veio a ser alterada, transferindo-se a órgãos eletivos e múltiplos (o Consulado e outras instâncias denominadas magistraturas). O cônsul e os magistrados eram em geral recrutados entre os membros das principais famílias, e gozavam de muito prestígio.
Admite-se que, paralelamente a essa estrutura de feição aristocrática, organizou-se uma outra de base democrática. Assim, assembleias de diversos grupos sociais (comícios) elegiam tribunos, espécie de representantes (originariamente com atribuições de protetor) junto às instituições tradicionais.
Do mesmo modo que na Grécia, a condição de cidadão não alcançava a todos. Contudo, considera-se que, em Roma, o acesso veio a ser mais fácil, assegurados os direitos de cidadãos aos que se dispunham a formar colônias nas regiões conquistadas, independentemente de pertencerem ou não aos patrícios (denominação atribuída a essa classe social, enquanto os romanos não proprietários chamavam-se plebeus).
Mesmo em relação aos povos vencidos, muitas das prerrogativas dos cidadãos seriam facultadas a diversas pessoas. Nas fases iniciais das guerras de conquista, a tropa era recrutada entre os cidadãos. Com o prolongamento das lutas e o aumento dos efetivos, as camadas mais baixas foram incorporadas a esse serviço. A chefia da legião, de feição transitória, foi se tornando cada vez mais prolongada.
Com a dispersão dos cidadãos pelo Império, as assembleias acabaram caindo em desuso. Na medida em que se consolida o Império, o tribuno torna-se um título honorífico, sendo de nomeação do Senado ou diretamente do Imperador.
Sob o Império, os poderes do Senado vêm-se sucessivamente reduzidos. Passam diretamente ao Imperador os assuntos financeiros e a política externa. Grande parte das províncias são administradas sob a direção do Imperador e só parte delas continua subordinada aos senadores.
O ponto fraco das instituições imperiais consistia na incerteza em matéria de sucessão. Os cinco primeiros imperadores pertenciam à mesma família. Com as guerras civis que se seguiram à morte do último daqueles dignitários (Nero, em 68 d.C.), ascende ao poder um general (Vespasiano) que não pertencia às velhas famílias, não obstante o que consegue transmiti-lo a seus descendentes. Por fim, prevalece o princípio que consagra ao governante o poder de designar o seu sucessor.
(*) Este texto faz parte da série de 10 artigos escritos por Antônio Paim no início de 2021, pouco antes de sua morte
Revisão final de Rogério Schmitt