Antonio Paim, filósofo e historiador (*)
A constituição do Estado Moderno, centralizador do poder e monopolizador da violência nos marcos de determinado território, resultou certamente da conjugação de todo um elenco de circunstâncias, apresentando, além disto, cada Estado nacional de per si, certas e determinadas singularidades.
Contudo, essa formidável organização não teria sido possível sem a elaboração teórica que a acompanhou. Jean-Jacques Chevallier diz quem se colocou a serviço do absolutismo. São eles Nicolau Maquiavel (1459-1527), Jean Bodin (1530-1596), Thomas Hobbes (1588-1679) e Jacques Bossuet (1627-1704).
O nível de centralização alcançado pelo Estado Moderno está indubitavelmente correlacionado às dimensões do território em que se propõe estabelecê-la. Se a pretensão objetivasse alcançar toda a Europa Ocidental ou mesmo apenas os limites do Sacro Império, muito provavelmente não seria bem-sucedida. É certo também que as armas de fogo deram ao Príncipe patrocinador do empreendimento a possibilidade real de vencer a resistência dos castelos, autênticos símbolos da força do sistema descentralizado em vigor.
Em que pese o significado desses e de outros aspectos materiais – ou mesmo fortuitos e históricos – o maior obstáculo a vencer residia na longa tradição de exercício descentralizado da autoridade pública.
Na Antiguidade Ocidental, as famílias preservaram grandes parcelas do poder, cabendo-lhes mesmo administrar a Justiça quando a instância pública condenasse qualquer de seus membros. A par disto, a dominação romana sobre as áreas conquistadas compreendia o respeito às formas adotadas pelos governos locais. No período que precede a consolidação da feudalidade europeia, inexistia virtualmente qualquer poder, e deve-se justamente a tal circunstância a constituição do feudalismo como um serviço.
O sistema vitorioso e que iria garantir o apogeu dos séculos 12 e 13 repousava na multiplicidade de focos de poder, entrelaçados segundo regras informais que acabariam por formalizar-se plenamente. Seria impossível combater tão longa e arraigada tradição através do simples recurso à força.
A empresa seria mais bem-sucedida na medida em que contasse com argumentos convincentes para respaldá-la. Tenha-se presente que na altura em que o fenômeno ocorre – com maior força no século 17 -, a elite europeia estava longe de ser constituída por guerreiros incultos descendentes dos povos germânicos, a exemplo de Carlos Magno.
Havia passado pelo longo processo civilizatório a que correspondia o cristianismo, com todos os seus subprodutos, como a sofisticação estética ou as disputationes escolásticas. Os argumentos fornecidos por aqueles pensadores equivalem também a uma contribuição essencial ao aparecimento do Estado Moderno.
Conforme Jean-Jacques Chevallier, na obra também clássica intitulada “As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias” (tradução brasileira, Rio de Janeiro, Editora Agir, sucessivas edições) à sua época, a exemplo do que ocorreu com a obra de Maquiavel, “Os seis livros da República” (1576), de Bodin, deram uma contribuição relevante à obra centralizadora na medida em que reelaboram a tradição jurídica para tudo subordinar à soberania do Estado. É de sua autoria esta afirmativa, tornada clássica: “A República é o governo em que as relações entre pessoas e instituições estão submetidas à soberania do Estado”.
O mérito de Hobbes consiste em haver dado uma solução racional à constituição do absolutismo, a seus olhos plenamente integrada na ciência nova, em cuja elaboração também se considerava engajada e de que resultaria a superação da Escolástica e a emergência da filosofia e da ciência modernas. A chave de sua explicação residiria no conceito de estado de natureza, que teria precedido a sociedade, caracterizado por uma guerra de todos contra todos. Trata-se de um estado miserável onde não há nem pode haver justiça ou propriedade.
Para sair de semelhante situação degradada – espécie de situação-limite, por isto mesmo, absoluta – requer-se uma alternativa igualmente radical. Os homens vêm-se instados à renúncia absoluta perante essa construção artificial que é o Estado, a que denomina de Leviatã (monstro colossal de que se fala no Livro de Jó, na Bíblia).
Não se preservou maior interesse pelos tratados de Bossuet. Seu texto básico intitulou-o de “A política extraída da Sagrada Escritura” (1679), e destinava-se à formação do herdeiro do trono francês. Achava-se, portanto, associado ao ciclo da história que estava sendo superado.
(*) Este texto faz parte da série de 10 artigos escritos por Antônio Paim no início de 2021, pouco antes de sua morte
Revisão final de Rogério Schmitt