Pesquisar

tempo de leitura: 7 min salvar no browser

{ BREVE HISTÓRIA DO PENSAMENTO POLÍTICO }

Capítulo 6 – O papel de Locke no surgimento do governo representativo na Inglaterra

Antonio Paim aborda, no sexto capítulo da série, a obra do filósofo inglês conhecido como o “pai do liberalismo”

Antonio Paim, filósofo e historiador (*)

John Locke (1632-1704) é o autor da doutrina do governo representativo, no célebre “Segundo Tratado do Governo Civil”. Nesse livro, trata-se de generalizar uma experiência social dramática, vivida pelo povo inglês no século XVII. Tinha por missão específica unificar o ponto de vista da elite e proporcionar encaminhamento diferente à luta fratricida vivenciada pelo país. Obtido tal resultado, com a chamada Revolução Gloriosa de 1688, o autor considerou que sua missão se havia esgotado, a ponto de deixar de inclui-la no conjunto de sua produção literária.

Na reconstituição do processo histórico é que a posteridade estabeleceu seu significado e lugar históricos. Resumidamente, depois da morte de Elisabete I, em 1603, a reintrodução do catolicismo, através da Casa Real, veio a constituir uma possibilidade efetiva. Desde que Henrique VIII rompeu com o Papa, em 1534, e criara a Igreja Anglicana, ocorrera a conversão para o protestantismo da imensa maioria da população. Num ambiente destes, representava uma temeridade, de parte da Casa Real, dispor-se a enfrentar a ira popular tentando reaproximar-se do Papa.

Foi precisamente o que fez Carlos I, cujo reinado iniciou-se em 1625. Casou-se com uma católica, irmã do rei da França (Luís XIII) o que lhe daria suporte militar. A partir de 1629, deixou de convocar o Parlamento e instaurou governo pessoal. Em 1640 iniciou-se no país a guerra civil, da qual o monarca saiu derrotado. Calos I foi decapitado em 1649, extinguiu-se a monarquia e o poder passou a ser exercido pelo Parlamento.

Essa experiência fracassou completamente. A prática mostrou que o Parlamento não conhecia precisamente sua função. Além disto, entendeu-se que os anglicanos não deviam fazer-se representar, manifestando o entendimento de que a composição do órgão devia ter uma base religiosa. Temerosos de que o país entrasse em colapso, os parlamentares resolvem entregar o poder a Oliver Cromwell (1599-1658), que se destacara no curso da guerra civil, revelando extrema competência militar.

Cromwell tornou-se Lorde Protetor e logo se deu conta da impossibilidade de governar com o Parlamento existente. Dissolveu-o e constituiu um outro, por nomeação pessoal, integrado por gente de sua confiança. De fato, governou como um ditador. Ao falecer, não tendo logrado instaurar uma nova Casa Real, entregando o poder ao filho, restaurou-se a monarquia em 1660. Assumiu o filho do rei decapitado, com o título de Carlos II (reinou até 1685), sendo substituído por Jaime II, abertamente católico e que iniciou esforços para restabelecer a convivência com o Papa.

Objetivamente, todo o sacrifício vivido ao longo do século revelou-se inútil. Parte dos convertidos emigrou em massa para a América. Começou, então, a conspiração para entregar o poder a uma das filhas protestantes de Jaime II, casada com Guilherme de Orange, rei da Holanda, que gozava de grande prestígio na Europa por haver garantido militarmente a independência de seu país e também por assegurar ampla liberdade, tornando o país refúgio dos intelectuais protestantes, perseguidos nas nações católicas.

A conspiração era liderada por Anthony Ashley Cooper, Lorde Shaftesbury (1621-1683), chefe dos whigs – como então se chamavam os liberais – personalidade de grande prestígio e que fora Lorde Chanceler. Locke se ligara a Shaftesbury como médico, o acompanhara ao exílio e, com a sua morte, assumiu a liderança do movimento.

Entendia, entretanto, que era necessário responder a duas perguntas: 1º) quem faz o que no governo representativo?; e 2º) quem deve ter o direito de fazer-se representar? O “Segundo Tratado do Governo Civil” propunha-se justamente respondê-las, de modo que a elite soubesse precisamente o que fazer, a fim de colocar a Inglaterra a salvo de reis católicos, mas também – e sobretudo – como assegurar a sobrevivência do Parlamento, conjuntamente com os demais poderes dos quais a nação não podia igualmente prescindir.

Ao dar conta dessa incumbência, Locke imaginava que o livro não tinha razão de sobreviver. Contudo tornou-se o texto básico da fase inicial, quando se dá a consolidação do governo representativo na Inglaterra. Nessa mesma fase, os escritos políticos de Emmanuel Kant (1724-1804) definem o Estado de Direito, enquanto “O Espírito das leis” (1748) de Montesquieu (1689-1755) difunde na Europa a ideia do governo representativo.

Adiante apresentamos as imprescindíveis indicações sobre o conteúdo do “Segundo Tratado”, de Locke, precedidos dos dados biográficos do autor.

Tendo concluído o curso de medicina aos 34 anos, Locke tornou-se médico de Anthony Ashley Cooper, Lorde Shaftesbury, que foi o grande articulador das hostes liberais no atribulado período em que viveu. Logo tornar-se-ia seu assessor e íntimo colaborador. Nessa condição, participou, em 1669, da elaboração de uma Constituição para a Carolina, colônia inglesa na América do Norte que recebera grande contingente de emigrados nas fases de perseguição religiosa e guerra civil.

Shaftesbury foi Lorde Chanceler no começo da década de 1670, sob Carlos II. Destituído em 1675, esteve preso e exilado, voltando a fazer parte do governo em 1678. Mas logo depois, em 1681, seria compelido a exilar-se na Holanda. Em seguida, Locke o acompanharia. Com a morte de Shaftesbury, em 1683, assumiu a coordenação do que viria a ser a Revolução Gloriosa de 1688. Para semelhante desfecho muito contribuiu a sistematização que realizou das ideias liberais no “Segundo Tratado do Governo Civil”, conforme se referiu.

Voltaria à Inglaterra no mesmo navio que trouxe da Holanda, para assumir o poder, a Guilherme de Orange evento que consuma a Revolução. Mas não quis exercer nenhuma função proeminente no governo. Locke dedicou os últimos quinze anos de sua vida (faleceu em 1704) a dar forma definitiva às suas ideias acerca da filosofia, da tolerância religiosa, da educação, da teologia etc. Encontra-se neste caso o “Ensaio sobre o entendimento humano”, publicado em 1690, mas que, se admite, tenha sido elaborado ainda na década de 1660. Têm grande importância, também, as Cartas sobre a tolerância e os seus estudos sobre educação (“Alguns pensamentos referentes à educação”, de 1693).

São dois os tratados acerca do governo civil, da autoria de John Locke. O primeiro consiste numa refutação da tese aventada por Robert Filmer, no livro “Patriarca” (1680), segundo a qual a origem do poder dos reis provém da circunstância de que correspondem à descendência de Adão.

O segundo desenvolve a doutrina daquilo que seria a autêntica origem do poder, isto é, o governo representativo. Tornou-se, portanto, o marco inicial de fundação da doutrina liberal. No “Segundo Tratado”, Locke apresentou uma formulação teórica acerca do seu surgimento que, por si só, já fixa o rumo da solução do problema que a todos preocupava (a questão das atribuições).

Como se sabe, Hobbes havia posto em circulação a ideia de que, antes de organizar-se em sociedade, os homens viveriam no chamado “estado de natureza”, em guerra uns com os outros, acabando por impor-se a autoridade governamental. Locke aceitou a ideia de “estado de natureza”, mas apresentou-a de forma muito diferente, consoante se pode ver da citação a seguir: “O fim capital e principal em vista do qual os homens se associam nas repúblicas, e se submetem aos governos é a conservação de sua propriedade” (parágrafo 124).

No estado de natureza, carecia o homem de certas condições para lograr semelhante objetivo, notadamente as seguintes: 1ª) “uma lei estável, fixada, conhecida, que um consentimento geral aceite e reconheça como critério do bem e do mal e como medida comum para estatuir sobre todos os diferendos”; 2ª) “um juiz conhecido de todos o imparcial, que seja competente para estatuir sobre todos os diferendos segundo a lei estabelecida”; e 3ª) “em apoio da decisão, falta sempre a potência para a impor quando ela é justa e colocá-la em execução da forma devida”.

Em vista disto, o homem renunciou aos poderes de que dispunha – o de fazer tudo que julgasse conveniente para sua própria conservação, nos limites autorizados pela lei natural, e o de punir infrações cometidas contra a mesma lei natural – passando a atribui-los à sociedade, mais precisamente, ao poder legislativo, que é o poder por excelência da sociedade. Para que a sociedade civil corresponda à expectativa dos que renunciam ao estado de natureza, deve preencher as condições de que carecia este último.

Assim, escreve: “Quem quer que detenha o poder legislativo, ou supremo, de uma sociedade política deve governar em virtude de leis estabelecidas e permanentes, promulgadas e conhecidas do povo, e não em decorrência de decretos improvisados; deve governar por intermédio de juízes íntegros e imparciais, que resolvam os diferendos em conformidade com as leis; não deve utilizar a força da comunidade, no interior, senão para assegurar a aplicação daquelas leis e, no exterior, somente para prevenir ou reparar ataques do estrangeiro e manter a comunidade ao abrigo das incursões e da invasão. Tudo isto não deve ter em vista nenhum outro fim além da paz, a segurança e o bem público do povo” (parágrafo 131).

Segundo Locke, essa conclusão impõe-se a partir da simples evidência de que “não se poderia atribuir à criatura racional a intenção de mudar de estado para achar-se em pior situação”. As premissas mais gerais para semelhante colocação haviam sido estabelecidas no “Primeiro Tratado”, que, consoante se indicou, refuta ao “Patriarca”, de Robert Filmer, devendo ter sido elaborado nesse mesmo ano. Para Filmer, nenhum homem nasce livre, nem mesmo os príncipes, salvo aquele ou aqueles que, em virtude de direito divino, são herdeiros legítimos de Adão. A tese se completa pela afirmativa de que todo governo é monarquia absoluta.

Locke se pergunta se seria cabível admitir que Deus haja dado o mundo a Adão, se semelhante hipótese concorda com o texto bíblico, e por essa via tratará de fixar o que o homem recebeu de próprio, do Criador, e o que recebeu em comum com todos os homens. Em seu estado de natureza, o homem guarda apenas a propriedade de sua própria pessoa, porquanto a terra e todas as criaturas inferiores foram por Deus doadas aos homens em comum – eis a conclusão do filósofo depois de examinar detidamente a tese de Filmer.

“A terra e tudo o que ela contém são uma doação feita aos homens para seu entretenimento e conforto. Todos os frutos que ela produz naturalmente e todas as bestas que alimenta pertencem em comum à Humanidade, enquanto produção espontânea da natureza; ninguém possui privativamente uma parte qualquer, com exclusão do resto da Humanidade, quando estes bens se apresentam em seu estado natural; entretanto, como acham-se destinados ao uso pelo homem, é necessário que exista algum meio segundo o qual possam ser apropriados, a fim de que indivíduos determinados possam deles servir-se. Esse meio será o trabalho” (parágrafo 26).

Na obra do grande pensador, a propriedade e a riqueza tornam-se altamente dignificantes. O monopólio da representação pela classe proprietária é outra das características do novo sistema, colocação que deu lugar ao chamado processo de democratização da ideia liberal. Finalmente, o Legislativo é apresentado como o poder supremo.

(*) Este texto faz parte da série de 10 artigos escritos por Antônio Paim no início de 2021, pouco antes de sua morte

Revisão final de Rogério Schmitt


ˇ

Atenção!

Esta versão de navegador foi descontinuada e por isso não oferece suporte a todas as funcionalidades deste site.

Nós recomendamos a utilização dos navegadores Google Chrome, Mozilla Firefox ou Microsoft Edge.

Agradecemos a sua compreensão!